Arte: Silmara Mansur / Imagem: iStock. |
Por Karine Rodrigues
Aos 35 anos, João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes Brito, um português nascido em Santos-o-Velho, nomeado governador da Bahia, viu-se em maus lençóis: foi acometido por uma “febre contínua” acompanhada de uma “dor de lado” e “fastio”. Tratado com uma dieta de água morna e erva, muita tintura à base de ópio e medicamentos cáusticos, acabou não resistindo. Morreu entre 10h e 11h da manhã do dia 24 de maio de 1809, noticiou a Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal impresso no Brasil.
O que para nós parece uma onipresença das febres se deve ao fato de que grande parte das manifestações patológicas apresentadas pelo indivíduo enfermo daquele tempo eram compatíveis com um diagnóstico de febre
Naqueles primeiros anos do século 19, sucumbiam à febre até aqueles com melhores condições de vida e mais acesso a tratamentos, como o governador da Bahia, também conhecido como conde da Ponte, destinatário da emblemática Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, na qual o príncipe regente D.João ordena a abertura dos portos às nações amigas.
No Brasil oitocentista, as febres pipocavam em todas as camadas sociais, sob as mais diversas classificações: contínuas, nervosas, biliosas, lentas, epidêmicas, pútridas, intermitentes, malignas, ou violentas. Os adjetivos para qualificá-las eram tão variados quanto as formas de tratá-las.
“O jovem príncipe, o velho conselheiro de Estado, os pobres camponeses do antigo reino, os maltrapilhos combatentes, todos padeceram do mesmo mal que, aparentemente, pouco considerava a posição de suas vítimas na rígida arquitetura social do Antigo Regime português. Por outro lado, há de se considerar também que, se todos foram vitimados pela febre, não se tratava da mesma febre em cada um dos casos”, escreve o historiador Ricardo Cabral de Freitas no artigo Ardentes trópicos: febres e saúde pública no Brasil joanino, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
No séc. 19, as chamadas febres atingiam pessoas de diferentes origens sociais. Imagem: Luke Fildes.
No estudo, Freitas relata como, antes mesmo da epidemia de febre amarela que devastou o Rio de Janeiro em 1849 e 1850, as febres já eram uma “presença praticamente incontornável na vida dos indivíduos” e fonte de muita preocupação entre a população e as autoridades públicas. Tanto que, a partir da transferência da Corte para o Brasil, em 1808, em meio a esforços para sanear a nova capital, a Coroa recorreu a integrantes da intelectualidade médica local para que investigassem o fenômeno e encontrassem formas de tratá-lo.
O historiador acompanhou a trajetória de três desses médicos, que se formaram na Europa e estiveram no Brasil em algum momento entre as primeiras duas décadas do século 19: o português José Maria Bomtempo (1774-1843), que chegou ao Brasil em 1808, após sete anos na África Ocidental; o mineiro Francisco de Mello Franco (1757-1823), que retornou à América do Sul em 1817 após décadas em Lisboa, autor de Ensaio sobre as febres do Rio de Janeiro (1821); e o italiano Luiz Vicente de Simoni (1792-1881), que após dois anos no Brasil, partiu para Moçambique.
Febres em clima quente e úmido
As febres no Rio e em outras províncias pareciam apresentar diferenças em relação às registradas da Europa. Diante disso, os médicos se viram diante do desafio de rever os conhecimentos já adquiridos durante a formação em outros países e investigar as especificidades do clima brasileiro e de seus efeitos sobre o corpo para construir saberes próprios sobre as febres tropicais. Elas seriam, então, desconhecidas? Não exatamente, explica Freitas.
“Em alguns casos, o que gerava estranhamento era o fato de algumas febres observadas na Europa não serem tão comuns aqui quanto esperavam, como foi o caso de Mello Franco com as febres contagiosas. Em outros, procuravam corrigir opiniões correntes sobre febres aqui observadas, como José Maria Bomtempo, que afirmava que as supostas febres malignas não seriam nada além de febres essenciais, de menor gravidade", afirma o historiador.
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Morte por febre não poupava classes privilegiadas. Imagem: Adolph Munzel. |
Segundo Freitas, era comum tais médicos justificarem seus posicionamentos por meio de estudos climatológicos, nos quais buscavam nas especificidades do clima tropical do Rio as condições particulares geradoras das febres que investigavam. "Não são poucas as menções ao clima quente e úmido, associado ao terreno pantanoso e a suposta má circulação de ar da cidade, como origem de 'emanações pútridas'. Os hábitos de higiene da população, reprováveis aos olhos desses médicos, também eram fator dessa equação: dejetos a céu aberto e o hábito de enterrar mortos em igrejas”, detalha o pesquisador.
Se hoje a febre é vista como um sintoma, que se revela com o aumento da temperatura corporal e é associada à reação do organismo a algum patógeno, naquela época, era considerada uma doença em si e abarcava uma ampla gama de sintomas.
“O que para nós parece uma onipresença das febres se deve ao fato de que grande parte das manifestações patológicas apresentadas pelo indivíduo enfermo daquele tempo eram compatíveis com um diagnóstico de febre, de alguma forma. Era essa subjetividade que tornava o tema tão controverso entre os médicos. Isso só começa a mudar de maneira efetiva na segunda metade do século 19, quando as febres deixam de ser identificadas pelos seus sintomas para serem identificadas por meio das lesões específicas que causavam nos tecidos orgânicos. Isso fez com que a antigas categorias de febres aos poucos se pulverizassem em doenças separadas, como malária, tifo e gripe”.
Na segunda metade do século 19, as febres deixam de ser identificadas pelos seus sintomas para serem identificadas por meio das lesões específicas que causavam nos tecidos orgânicos. Isso fez com que a antigas categorias de febres aos poucos se pulverizassem em doenças separadas, como malária, tifo e gripe
Bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz, Freitas se deu conta da presença recorrente das febres ao iniciar suas investigações em manuais de medicina destinados ao público não especializado, disseminados no ambiente luso-brasileiro a partir da segunda metade do século 18. Percebeu também que, no caso do Brasil, o tema fora pouco explorado pela historiografia.
No doutorado defendido em 2017, após período sanduíche na École des Hautes Études em Sciencies Sociales (EHESS), em Paris, na França, Freitas aprofundou seus conhecimentos na área ao escrever a tese Os sentidos e as ideias: trajetória e concepções médicas de Francisco de Mello Franco na ilustração luso-brasileira (1776-1823). “O escrito [de Mello Franco] de 1821 foi o que me apresentou às investigações sobre as febres realizadas pela intelectualidade da Corte durante aquele período de intensas reformas na cidade alçada à capital do Império Português”, conta.
Na tangente da historiografia: as febres no Brasil joanino
Em sua pesquisa, Freitas percebeu que embora as febres, de modo geral, fossem disseminadas em todas as camadas sociais, a historiografia se voltou mais para as doenças epidêmicas de maior impacto, como a cólera e a febre amarela, e para enfermidades endêmicas de identificação mais clara, como lepra ou varíola. “O problema das febres é que seus diagnósticos abarcavam um conjunto muito amplo e subjetivo de manifestações patológicas, tornando-se tema pouco consensual, mesmo entre os médicos do século 19”, detalha o historiador.
Enumerar as febres, diga-se de passagem, nunca foi tarefa simples. Nem por isso, os pensadores da medicina capitularam diante de tamanho desafio. À semelhança do que os botânicos fazem com as plantas, buscaram categorizar as febres em gêneros e espécies, numa tentativa de organizar o diagnóstico de cada tipo e identificar a terapêutica mais adequada para cada categoria, explica o pesquisador. Os critérios de classificação eram igualmente diversificados.
Entre mais ricos, febres eram atribuídas até mesmo a tristeza. Imagem: Zygmunt Andrychiewicz.
“No século 18, autores como William Cullen e Boissier de Sauvages produziram diferentes sistemas tomando como base os sintomas das febres. Já no contexto da medicina clínica no século 19, elas foram organizadas segundo as estruturas orgânicas que afetavam. Também é interessante observar como diferentes correntes de pensamento médico criaram suas próprias febres ao longo do tempo. As terçãs e quartãs – ocorridas em ciclos de 3 e 4 dias – remetem mais diretamente à tradição grega; já as febres pútridas são contribuição da medicina galênica, enquanto as nervosas são, em geral, produto dos estudos vitalistas do Iluminismo. Cada uma delas revela algo do que essas correntes de pensamento compreendiam como processo patológico em épocas distintas”, esclarece o historiador.
A conduta e a origem do enfermo eram objetos do escrutínio e da moralização do olhar médico […]. Havia um componente de responsabilização do indivíduo pelo seu adoecimento que vinha acompanhado dos estigmas associados à sua classe social
Embora as febres atingissem a população indiscriminadamente, o diagnóstico de suas causas não raro era feito com base em dois pesos e duas medidas, a depender da classe social do paciente. “A conduta e a origem do enfermo eram também objetos do escrutínio e da moralização do olhar médico no processo diagnóstico”, explica Freitas. Ao passo que os indivíduos mais pobres eram responsabilizados por sua doença a partir de estigmas ligados a sua origem, quando os enfermos eram das camadas mais abastadas, era comum atribuir o mal a excessos de atividade intelectual, tristeza e ansiedade, por exemplo.
As teses médicas daquele período, segundo Freitas, geralmente eram escritas por homens formados em faculdades de medicina europeias, pertencentes à elite da profissão, que apresentavam um olhar que deixava os grupos sociais mais desfavorecidos à margem. Para compensar essa especificidade, o historiador buscou, em sua pesquisa, outras fontes de análise. Jornais, cartas e documentos oficiais permitiram vislumbrar um pouco da repercussão das febres para além do círculo médico. “Mas ainda há muito a ser feito”, avalia. Que venham logo, então, novos capítulos sobre essa história tórrida do Brasil.