De alimento completo, perfeito e glorificado nos séculos 19 e 20 a vilão das dietas no século 21, o leite no Brasil já foi o responsável por grandes intervenções estatais e esforços do ponto de vista sanitário para que fosse oferecido à sua crescente população urbana um alimento básico, rico em vitaminas e minerais e seguro do ponto de vista da higiene. Uma boa parte dessa história é contada no livro Leite para os Trópicos! Consumo, produção e políticas públicas no Brasil, 1889-1964, do professor alemão Sören Brinkmann, titular da Cátedra de História e Ciência Política do Centro Willy Brandt da Universidade de Wrocław (Polônia).
Situado na interface da história sanitária, econômica e administrativa, este estudo é um dos trabalhos de pesquisa mais abrangentes sobre o leite no Brasil e enriquece o estado da pesquisa sobre a história das políticas públicas e de saúde no século XX. Com base nas duas principais cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, o autor traça um quadro multifacetado do desenvolvimento e das condições de produção do setor de laticínios, bem como das tentativas do Estado de regulamentá-lo durante três períodos políticos diferentes na formação do Brasil moderno. De acordo com Brinkmann, o que é específico da história do leite no Brasil é o caminho muito mais longo de sua transformação em um alimento de massa moderno, em comparação com os países do Norte Global.O volume foi publicado em dezembro de 2023 pela editora Fiocruz do Rio de Janeiro.
Em entrevista ao site da Casa de Oswaldo Cruz, o pesquisador aborda questões como a importância dos estudos do campo da história da alimentação e a lacuna que há na América Latina nesse sentido. Ele discute também a forma como o alimento passa a ser visto a partir dos anos 1990, com uma maior preocupação em relação à intolerância à lactose e o entendimento de que o leite animal não é tão necessário para o consumo humano.
Por que escrever um livro sobre esse tema?
No mundo anglo-saxão, especialmente nos EUA, a história da alimentação é há muito tempo um campo de pesquisa estabelecido e institucionalizado em universidades, que em muitos estudos demonstrou de forma impressionante seu potencial de gerar novos insights e de contribuir substancialmente ao nosso entendimento do passado. A nutrição e os alimentos são elementos fundamentais para a vida humana e, ao mesmo tempo, estão sempre inseridos em um contexto complexo de dependências econômicas, sociais, culturais e políticas. Tomar a alimentação ou determinados alimentos como ponto de partida dá ao historiador a oportunidade de desenvolver perspectivas inovadoras sobre contextos que parecem conhecidos há muito tempo e desse jeito gerar novos conhecimentos. No Brasil e em muitos outros países da América Latina, essa abordagem de pesquisa ainda está em sua infância. Meu livro é uma contribuição para preencher essa lacuna.
Há alguns anos você foi um dos responsáveis pelo dossiê “A questão do leite na América Latina“, publicado pela Revista História Ciências Saúde -Manguinhos, aqui da Casa de Oswaldo Cruz (COC). O que seria a “questão” do leite?
A chamada questão do leite não surgiu como um problema especificamente latino-americano, mas já era igualmente relevante também nas grandes cidades do Norte Global a partir do final do século 19. O pano de fundo para isso era a suposição de que a causa das altas taxas de mortalidade infantil em todos os lugares se devia ao leite comercial de má qualidade, ou seja, contaminado por bactérias. Portanto, a “questão do leite” consistia no desafio para as autoridades sanitárias de garantir um abastecimento para as grandes cidades do mundo ocidental com leite de vaca higienicamente seguro. O processo de transformação dos sistemas de abastecimento que começou nesse momento junto com o papel de distintos atores, como especialistas, poderes públicos e indústria de laticínios é muito bem pesquisado nos países do Norte Global. No entanto, com relação aos países da América Latina, ainda há muitas lacunas. Nosso dossiê é uma contribuição para preencher essa lacuna em um panorama comparativo.
Quando e por que o leite passou a ser enxergado como um alimento importante?
O início da glorificação do leite como um “alimento ideal” remonta à primeira metade do século XIX, momento em que a química de alimentos surgiu como disciplina. De acordo com seu julgamento, o leite de vaca continha todos os elementos necessários para o organismo humano em proporções ideais, ou seja, um alimento supostamente perfeito. Mesmo assim, nessa época o consumo de leite devia ser reservado para pessoas particularmente vulneráveis como bebês e crianças pequenas, mulheres grávidas e convalescentes. Essas restrições foram levantadas desde o início do século 20 e com a descoberta das vitaminas e suas funções vitais. Do ponto de vista da nova ciência da alimentação, o leite não somente provou ser um alimento ideal, mais até mesmo um corretivo nutricional, o mais importante “alimento protetor”, capaz de compensar todos os déficits das dietas populares da época. A partir desse momento, beber leite tornou-se uma obrigação de saúde para todos e, liderada pelos EUA, uma verdadeira “ideologia do leite” varreu o mundo ocidental. O aumento no consumo de leite per capita em muitos países do norte nesse momento foi extraordinário.
O que há de específico na história do leite no Brasil?
O que é específico da história do leite no Brasil é o caminho para sua transformação em um alimento de massa. Hoje, o Brasil é um dos maiores produtores de leite do mundo e o consumo per capita também se aproxima das taxas de consumo dos “países leiteiros” clássicos do Norte Global. No entanto, isso é apenas o resultado de um desenvolvimento recente que só se acelerou significativamente com a introdução do leite UHT (processado em temperatura ultra-alta) desde a década de 1990. Em contraste, a introdução do leite pasteurizado, que tem sido a base para o avanço da “era do leite” no Norte Global desde a década de 1920, fracassou no Brasil devido a uma longa série de razões estruturais, principalmente econômicas, que analiso em meu livro. Ou, em outras palavras: do ponto de vista do consumidor nas duas maiores cidades brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o leite pasteurizado permaneceu um alimento pouco atraente até a década de 1960 (e muito além) porque sempre foi um alimento relativamente caro, de paladar duvidoso e baixa qualidade higiênica.
Qual a importância dos estudos que se inserem no campo chamado “história da alimentação” e qual a importância desses estudos para a América Latina e, sobretudo, para o Brasil?
Como já indiquei, a história da nutrição há muito se estabeleceu como um campo de pesquisa independente com grande potencial de gerar novos insights também e especialmente para os países da América Latina. A história da alimentação não tem uma abordagem metodológica própria, mas geralmente está aberta à combinação de diferentes abordagens e métodos, de acordo com a natureza multifacetada de seu objeto de estudo. E igualmente diversas são as possíveis questões de pesquisa, variando de aspectos etnográficos e antropológicos a sociais, econômicos e políticos. Pessoalmente, estou particularmente interessado no papel das políticas públicas no Brasil do século 20, no contexto de cidades em rápido crescimento e uma agricultura que era (e ainda é) estruturalmente orientada para a produção de culturas comerciais para o mercado mundial. No Brasil, no século 20, as questões de alimentação e abastecimento, principalmente nas grandes cidades, tiveram um enorme impacto social e político e levaram os governos em nível nacional e regional a intervir e desenvolver políticas públicas que dizem muito sobre a relação entre política, sociedade e economia.
Como fica a questão do leite a partir dos anos 1990, com a maior preocupação em relação à intolerância à lactose, uma maior consciência alimentar e o entendimento de que o leite animal não é tão necessário para o consumo humano?
As certezas científicas que antes sustentavam a “ideologia do leite” do século 20 tornaram-se irrelevantes hoje em dia por vários motivos. O leite é um alimento entre muitos outros, e há também boas razões para não aumentar ou mesmo reduzir seu consumo. Entretanto, a decisão deve ser deixada a cargo de cada indivíduo. No que diz respeito ao fenômeno da intolerância à lactose, essa é uma realidade que sempre existiu, mas só foi reconhecida como um fenômeno de massa tardiamente. Para metabolizar a lactose (açúcar do leite), o organismo precisa da enzima lactase, que é produzida pelo organismo na infância. Após os primeiros anos, a produção de lactase normalmente diminui, e é por isso que a condição comum na idade adulta é a intolerância à lactose. Isso se aplica a cerca de 75% da população mundial. Ao mesmo tempo, a tolerância à lactose é uma exceção e se baseia em uma mutação genética que ocorre com frequência especial nas populações do norte da Europa. O foco unilateral da ciência no Norte Global por muito tempo levou à falsa suposição de que a intolerância é uma anomalia. Não há dados precisos sobre o Brasil, mas devido à composição étnica muito variada, não há dúvida de que grande parte da população brasileira – até 35%, segundo estimativas – é intolerante à lactose. Entretanto, aqueles que não querem renunciar ao leite podem, hoje em dia, optar por produtos lácteos sem lactose.