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Altamente tecnológicos, sistemas de saúde precisam pensar a assistência à população de forma mais ampla, defende Joel Howell

12 set/2014

Joel Howell
“Missão da educação é desestabilizar as pessoas, abri-las a novas formas de pensar”, afirmou
Joel Howell, que ministrou curso na Fiocruz em agosto. Foto: Roberto Jesus Oscar

Professor dos departamentos de medicina e história da Universidade de Michigan (EUA), o médico e doutor em história e sociologia da ciência Joel Howell tem buscado entender, ao longo de sua carreira, por que a medicina norte-americana se tornou tão obcecada pelo uso da tecnologia, lançando um olhar sobre o contexto social do uso e da difusão dos aparatos utilizados em diagnósticos e tratamentos de saúde. Em meados de agosto, o pesquisador esteve na Fiocruz para ministrar, no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz, um curso de História da Medicina, no qual, além desse tema, abordou também questões como medicina e raça, hospitais e concepções de doença e de saúde. “Criamos um sistema que é baseado, em larga escala, em uma medicina de alta tecnologia, que não pensa tanto na saúde da população quanto pensa em cada paciente individualmente”, afirmou em entrevista concedida ao portal da COC

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Howell, que veio à Fiocruz por conta de um convênio firmado entre a instituição e a Universidade de Michigan, falou sobre sua trajetória profissional e o campo da história da medicina nos Estados Unidos, e não se furtou a discutir temas da atualidade, como os desafios do sistema de saúde norte-americano depois da implantação do chamado “Obamacare”, lei proposta pelo presidente Barack Obama visando aumentar o acesso da população à assistência médica. “O Obamacare veio para ficar. Isso vai resultar na necessidade de mais médicos para a atenção primária […]”, previu. O pesquisador ressaltou ainda que a hegemonia da especialização na medicina após a 2º Guerra Mundial não é incongruente com o fortalecimento da atenção primária. Confira os principais trechos:

Como o senhor vê o campo da história da medicina nos Estados Unidos? Está consolidado?

Certamente não está consolidado. Durante algum tempo houve uma tensão entre aqueles mais focados em uma história interna da medicina, tal como expresso no jornalismo médico e nas narrativas sobre os detalhes técnicos da prática da medicina, e aqueles que têm uma abordagem mais contextual, ou seja, mais interessada nos contextos sociais da medicina. Há cerca de uma década há um grupo – e eu faço parte dele – que tenta fundir essas duas abordagens, mostrando que ambas são importantes. Muitos de nós somos médicos e temos pós-graduação em outros campos do conhecimento tal como a história, o que nos permite ver os dois lados. Acho que essa é uma forma eficaz de abordagem. Uma das tensões é se deveríamos ter departamentos específicos de história da medicina ou praticar a história da medicina em departamentos de história. Na Universidade de Michigan eu estou no departamento de história. Nós não temos um departamento de história da medicina nem uma divisão de história da medicina. Temos um departamento de história. Isso tem vantagens e desvantagens. Eu diria que uma desvantagem é não termos um grupo específico de pessoas em torno da história da medicina. A vantagem, por outro lado, é que, neste caso, as pessoas que estão fazendo história da medicina o fazem sob a perspectiva mais ampla do campo da história.

Essa situação – o estudo da história da medicina dentro de departamentos de história – é a mais comum nos Estados Unidos ou há departamentos específicos dedicados à história da medicina?

Há muitos. As universidades Johns Hopkins, Harvard e Yale têm programas de história da medicina, que são excelentes.

Os grupos de história da medicina nos Estados Unidos são majoritariamente compostos de historiadores ou médicos?

Eu acredito que médicos podem ser historiadores. Não acho que tenha que ser só uma coisa ou outra. É misturado, e isso varia ao longo do tempo. Há duas organizações de história da medicina nos Estados Unidos. Uma é a Osler Society, que é composta sobretudo por pessoas formadas em medicina e não por doutores em outras áreas. Já a Associação Americana de História da Medicina tende a ter mais doutores em outras áreas do que médicos. Mas há, em grande parte, uma mistura.

O senhor se formou em medicina. O que o levou a se interessar por história?

Joel Howell
O impacto da especialização é que criou-se um sistema de alta tecnologia que não pensa tanto
na população quanto no paciente individualmente, disse Howell. Foto: Roberto Jesus Oscar.

Meu pai era historiador e minha mãe bióloga. Assim como todo mundo, sou uma combinação dos meus pais. Estudei medicina na Universidade de Chicago, onde fiz estágio e residência. Tive a oportunidade de estudar um pouco de história pelo caminho, e, durante minha residência, passei um mês no Wellcome Institute for the History of Medicine, em Londres, onde descobri o quanto adorava entrar e pesquisar nos arquivos. Meu interesse, então, era o uso do eletrocardiograma para diagnosticar uma condição cardíaca conhecida como fibrilação atrial e o trabalho de um médico chamado Sir Thomas Lewis. Voltei dessa experiência e tive a sorte de ser convidado a ir novamente a Londres para apresentar os resultados do meu trabalho em uma conferência. Fiquei sabendo sobre o Robert Wood Johnson Clinical Scholars Program, a partir do qual tive a oportunidade de ir para a Universidade da Pensilvânia, que tinha – e ainda tem – um dos melhores programas de história da medicina dos Estados Unidos. Fui para lá, estudei história da medicina, e fiquei me perguntando se era possível conseguir um trabalho nesse campo em uma faculdade de medicina. Disseram-me que provavelmente não, mas resolvi tentar. Então fui para a Universidade de Michigan em 1984. As coisas funcionaram bem. Eu continuei a praticar a clínica médica na universidade e passei a dedicar metade do meu tempo ao departamento de história, no qual dou aulas na pós-graduação e na graduação. Também trabalho na escola de saúde pública da universidade, mas de forma menos ativa do que nos outros dois departamentos [de medicina e de história].

O que o senhor está pesquisando atualmente?

Estou fazendo pesquisas em diferentes áreas. Minhas pesquisas históricas têm a ver com as ideias acerca das doenças cardíacas. Estou escrevendo um livro sobre a história das ideias acerca do infarto do miocárdio (também conhecido como ataque cardíaco), desde os primeiros anos do século 18 até os dias atuais. Estou interessado em como as pessoas pensavam o ataque cardíaco, como elas viam o prognóstico, as várias maneiras de diagnosticar pessoas com doenças do coração. Busco mostrar que tudo isso mudou ao longo do tempo. De certa forma, estou praticamente escrevendo uma biografia da doença e usando-a como um meio para compreender como as pessoas viam a medicina e a saúde de maneira mais geral.

Ao longo de sua carreira, quais são seus principais temas de interesse?

Meu principal foco tem sido os Estados Unidos e a Inglaterra dos séculos 19 e 20, embora isso tenha se diversificado nos últimos anos. Estou interessado na prática médica, naquilo que as pessoas fizeram concretamente; ou seja, é menos o interesse em uma história das ideias e mais em uma história das práticas, de sua organização, especialmente nos hospitais. Se eu fosse destacar algo realmente central seria a história da tecnologia médica, o uso e a disseminação de instrumentos, como os raios-X e o eletrocardiograma.

Pensando na questão geral da atenção primária em saúde, quais seriam as lições históricas da experiência atual nos Estados Unidos?

Que vai continuar mudando, que as definições não são estáveis – o que parece óbvio, mas as pessoas frequentemente agem como se fosse. Se você olhar para o começo do século 20, havia médicos praticando o que hoje chamaríamos de atenção primária. Eles não chamavam de atenção primária. Estavam simplesmente praticando medicina. O termo atenção primária propriamente dito só foi inventado na década de 1960. Eu acredito que o Affordable Care Act (ACA ou Obamacare) veio para ficar. Isso vai resultar na necessidade de mais médicos para a atenção primária, mas vai levar um longo tempo para esse processo se completar. Nós vamos ter um período de 10 a 20 anos para conseguirmos atender ao aumento na demanda de médicos para o atendimento primário.

Joel Howell
Joel defendeu o diálogo entre a vertente que pratica uma história da medicina com teor mais
técnicos, e aquela que têm uma abordagem mais contextual. Foto: Roberto Jesus Oscar.

O senhor mencionou durante uma de suas aulas na Fiocruz que, após a 2º Guerra Mundial, intensificou-se o processo de especialização na medicina. Que impactos isso teve sobre os sistemas públicos de saúde?

A especialização pode ser compatível com a atenção primária. Em termos gerais você pode ter uma especialidade em sua clínica médica e ao mesmo tempo praticar a atenção primária. Elas não são a antítese uma da outra. O impacto da especialização para os sistemas públicos de saúde é que criamos um sistema baseado, em larga escala, em uma medicina de alta tecnologia, com máquinas caras e sofisticadas, e que não pensa tanto na saúde da população quanto pensa em cada paciente individualmente. Nós deveríamos sim pensar sobre como vamos prestar assistência médica à população no sentido mais amplo.

Em outra aula, o senhor disse que, no combate atual ao ebola na África, está-se recorrendo a “um conceito do século passado para se combater uma epidemia deste século”, referindo-se ao isolamento físico dos pacientes. Como o senhor vê as ações que estão sendo feitas para enfrentar a doença na África?

Esta situação está expondo algumas falhas do sistema atual, mas acho que em geral tem sido feito um bom trabalho. Uma das falhas é a questão dos novos medicamentos e terapias experimentais. Está-se debatendo quem deve ter acesso a eles. E muitas vezes as pessoas estão se dando conta de que o fato de serem os medicamentos mais recentes não significa que funcionem. Há também questionamentos sobre por que eles foram usados principalmente em estrangeiros e não nos africanos. Em relação ao isolamento físico, parece ter dado razoavelmente certo. Nós vivemos em um mundo em que as viagens áreas são extremamente comuns. Por outro lado, o ebola não se espalha com tanta facilidade; é preciso ter contato físico com as pessoas infectadas. O cordão sanitário que eu mencionei – o traçado de uma linha de isolamento – foi uma situação mais dramática, mas tem o mesmo princípio geral, que é isolar as pessoas que parecem estar infectadas. Isso levanta questões éticas, porque também são isoladas pessoas que não têm o vírus.

Como foi a experiência de ministrar esse curso na Fiocruz?

Fiquei empolgado e impressionado com o interesse das pessoas que assistiram às aulas. Elas vieram, ouviram, refletiram e fizeram perguntas perspicazes e criteriosas. Fizeram-me pensar e me ensinaram sobre a medicina no Brasil, o que vai me ajudar em meus estudos sobre a medicina nos Estados Unidos. Uma das coisas que a história faz é permitir que se transcendam as fronteiras do tempo e do espaço. Se a medicina é inerentemente contextual, então, por definição, ela só pode existir em um contexto social particular. Se você quer seguir essa perspectiva e estudar como a medicina se diferencia em distintos lugares, há dois caminhos. Um é trabalhar com diferentes contextos históricos no tempo: ver como os Estados Unidos de 2014 se comparam com o país em 1900. Você também pode olhar para os Estados Unidos e olhar para o Brasil, como exemplos de comparação. E o que você verá são similaridades e diferenças. A discussão sobre algumas maneiras particulares de associação entre os hospitais no Brasil e as instituições de caridade estabelecidas para mantê-los problematizou a maneira como eu tradicionalmente pensava a criação de hospitais. Isso é bom! Acho que a missão mais importante da educação é desestabilizar as pessoas, abri-las a novas formas de pensar. E isso com certeza aconteceu com as interações que eu tive e com as coisas que eu ouvi durante as aulas na Fiocruz.