Encarar o patrimônio a partir de uma perspectiva social é fundamental para que as políticas públicas da área de cultura possam se voltar para questões que, tradicionalmente, são percebidas como alheias à sua esfera de atuação. Esses desafios estão ligados a temas como mudanças climáticas, desigualdades e conflitos bélicos. A avaliação é do diretor geral adjunto de Cultura da Unesco, Ernesto Ottone Ramírez, que proferiu uma conferência na 9ª Semana Fluminense do Patrimônio, realizada em 5 de novembro, no Rio.
Em alguns países, é complexo falar de mudanças climáticas quando as autoridades não creem nelas, mas nós acreditamos que é importante falar disso. Porque o impacto que as mudanças climáticas têm sobre o patrimônio cultural não é somente físico, é também social, e isso é o mais grave
Ao discutir processos que envolvem mudanças políticas profundas nos contextos brasileiro, iraquiano e senegalês, Ramírez afirmou que é preciso reavaliar como a cultura participa dos processos de coesão social dos países. “Tendo em vista os numerosos desafios que a sociedade de hoje enfrenta, uma instituição como a Unesco está convencida de que o social deve ser integrado como um aspecto fundamental no eixo das políticas públicas em cultura”, declarou durante a conferência, intitulada Criatividade e patrimônio: construindo políticas culturais inclusivas.
Reconstrução do patrimônio imaterial
Lançado em 2018 pela Unesco, o projeto Reviver o Espírito de Mosul foi apresentado por Ramírez como um exemplo de iniciativa em que a área da cultura exerceu um papel central no processo de reconstrução pós-conflito. Ao lado da recuperação de igrejas, biblioteca e universidade, a ação contemplou a reconstrução do patrimônio imaterial da terceira maior cidade iraquiana: o conjunto de valores que fazia desse centro urbano um importante eixo para diferentes religiões.
“Isso significa a recuperação do que é parte da coesão social. Isso significa reencantar os jovens para que voltem”, disse Ramírez em referência às mais de um milhão de pessoas que deixaram a região por conta do conflito. “A pergunta é voltar para quê? […] Por que voltar se as crianças que estão lá hoje se encontram com um vazio histórico de identidade e pertencimento?”, acrescentou.
Parte dos esforços para reinserção dessa população na região passa por gerar empregos para os jovens que retornam à cidade. A chamada economia criativa, na avaliação de Ramírez, é estratégica para o suprimento dessas ocupações. “Esses jovens estiveram em outros países se desenvolvendo e se abrindo ao mundo, e se você não lhes dá essa oportunidade de se colocar a serviço dessa comunidade com o que aprenderam durante os anos de exílio, vem um fracasso identitário que os afasta novamente do território”, afirmou.
Mudanças climáticas ameaçam patrimônio imaterial
Os desafios atuais dos órgãos da área da cultura, na avaliação de Ramírez, incluem também a busca de respostas para os efeitos das mudanças climáticas sobre o patrimônio cultural imaterial. É resultado desse fenômeno o desaparecimento de línguas, práticas sociais e estilos de vida em decorrência dos deslocamentos de populações forçados pelo aumento da temperatura no planeta.
“Em alguns países, é complexo falar de mudanças climáticas quando as autoridades não creem nelas, mas nós acreditamos que é importante falar disso. Porque o impacto que as mudanças climáticas têm sobre o patrimônio cultural não é somente físico, é também social, e isso é o mais grave”, declarou.
Ramírez destacou o compromisso da Unesco com a Agenda 2030, conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável acordado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU). Embora nenhum desses objetivos aborde diretamente a área da cultura, todos estão relacionados a ela na avaliação do diretor. “Um projeto como este dá sentido a uma agenda que tenta chegar a um futuro próximo em que as grandes problemáticas que o mundo enfrenta – que têm a ver com as desigualdades, com as mudanças estruturais na natureza e com temas como gênero e educação – estão colocados nos pilares do desenvolvimento e das políticas públicas”, avaliou.
Protocolos para salvaguarda do patrimônio
A agenda de Ramírez no Rio de Janeiro incluiu ainda uma visita ao Museu Nacional. Para ele, o incêndio que destruiu grande parte do edifício e de seus acervos – uma “perda irrecuperável” – deve servir de lição para que episódios semelhantes não se repitam. “Os desastres e as tragédias deveriam nos ajudar a utilizar as experiências do passado para evitar consequências similares no futuro”, disse, frisando que a instituição podia ser classificada como um “museu universal” pela natureza da coleção que detinha.
Os desastres e as tragédias deveriam nos ajudar a utilizar as experiências do passado para evitar consequências similares no futuro
Ramírez defendeu ainda a definição de protocolos anti-incêndio para a salvaguarda de acervos em museus, mas lamentou que essa ainda não é uma realidade na América Latina e em outras regiões, como África, Ásia e partes da Europa. “[Os protocolos] não são para mitigar um incêndio, porque um incêndio pode se impor pelas condições. É para saber o que salvamos, o que do nosso patrimônio é fundamental”, declarou.
A importância desse tipo de instrumento ficou evidente, segundo ele, durante o incêndio na catedral de Notre-Dame de Paris, em abril de 2019. “As imagens que percorriam o mundo eram dos três bombeiros jogando água. Essa água não era para apagar o incêndio, mas para que o edifício não caísse”, afirmou. “O que não se viu em nenhum momento […] é que, dentro, havia 400 bombeiros salvando todas as obras de arte uma por uma. Os bombeiros têm um protocolo e sabem exatamente por onde começar, por onde sair e o que salvar”, complementou.
Segundo ele, dias após a tragédia do Museu Nacional, a Unesco enviou uma missão de emergência ao Rio para trabalhar em um plano de ação que envolvesse tanto a reabilitação da parte física do museu como a elaboração de um plano de emergência e de protocolos que, futuramente, possam ser aplicados em outros museus e sítios patrimoniais.
Políticas públicas desumanizadas
Ministro da Cultura, das Artes e do Patrimônio do Chile durante o segundo governo de Michelle Bachelet, Ramírez comentou a onda de protestos que tomou conta do país a partir de outubro de 2019. Para ele, apesar do avanço econômico e institucional no país andino ao longo das últimas décadas, a população não se sente contemplada pelas políticas públicas levadas a cabo.
“Os termos de desigualdade nesses processos econômicos […] não têm a ver com o político. Tem a ver com a desumanização que é produzida nas políticas públicas. É não entender que toda a política pública afeta um ser humano”, analisou, acrescentando que as autoridades precisam sair mais às ruas e ouvir as pessoas para entender suas necessidades.
Capital Mundial da Arquitetura
O Rio de Janeiro será, em 2020, a primeira Capital Mundial da Arquitetura, título anunciado em janeiro de 2019 em Paris pelo diretor-geral adjunto de cultura da Unesco. As cidades assim designadas ficam responsáveis por promover uma série de eventos relacionados às questões urbanas durante o período de um ano. A programação para 2020 foi um dos itens na agenda de Ramírez, que em sua passagem pela cidade se reuniu com autoridades locais e organizadores.
Na avaliação dele, para além de exaltar a beleza e a diversidade cultural do Rio, a programação deve discutir os problemas da cidade e os investimentos sociais necessários. “O que nós, da Unesco, tratamos de transmitir para este grande marco […] é como aproveitá-lo para dar visibilidade à cidade do Rio e propor um debate de alto nível, em que certas problemáticas possam ser levantadas. […] São problemas da urbanização, do [tamanho] desmedido das cidades, da violência […], do trânsito”, disse.