Garantir recursos de tecnologia assistiva é fundamental, mas há que se abrir espaço também no processo de criação e avaliação das atividades
Por Karine Rodrigues
Surda de grau severo a profundo, a carioca Roberta Savedra Schiaffino faz uma volta no tempo e retorna aos primeiros meses da pandemia de Covid-19, quando respostas sobre a doença começaram a clarear o cenário. Naquele momento, testemunhou, mais uma vez, o que é viver em uma sociedade que, também no acesso ao conhecimento sobre ciência, está longe de ser inclusiva e acessível.
Apesar dos grandes esforços, ainda há um número gigantesco de brasileiros e brasileiras que não estão sendo envolvidos em ações de divulgação científica. […] Há pessoas com deficiências para as quais, muitas vezes, ações de divulgação científica não são acessíveis e/ou os mediadores não se sentem suficientemente capacitados para recebê-las.
“Estávamos diante de uma situação extremamente nova e angustiante, sem saber, no começo, qual passo dar. Depois que os estudos de especialistas passaram a ser divulgados, aconteceu o alívio. Mas não para os surdos”, diz, frisando a dificuldade de acesso a informações fundamentais sobre o novo coronavírus. Uma situação que, em certo grau, permanece: “O conteúdo chega de forma deturpada e incompleta, pelas poucas possibilidades de recursos que contemplem as nossas especificidades linguísticas”, acrescenta.
O relato de Roberta ilustra as dificuldades adicionais que a pandemia trouxe para quem usa a Língua Brasileira de Sinais (Libras) para se comunicar. Inicialmente, não existia sequer sinalização para termos relacionados à Covid-19. Mas Schiaffino, doutora em Divulgação Científica, sabe, por vivência pessoal e profissional, que as atividades na área já deixavam a desejar no quesito inclusão e acessibilidade antes do vírus Sars-CoV-2 surpreender o mundo.
“Os recursos de acessibilidade, como janela com Libras, legendagem e uso de uma identidade visual forte só serão de fato efetivos se os surdos fizerem parte do processo de produção e pós-produção, da mesma forma que não há como planejar rampas de acesso sem que os cadeirantes testem as mesmas”, avalia Schiaffino.
Segundo o último Censo, conduzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 24% da população declararam ter algum grau de dificuldade em pelo menos uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus), ou possuir deficiência intelectual. Aprovado em 2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência determina que poder público deve garantir as condições de acessibilidade e os recursos de tecnologia assistiva para permitir a inclusão de todos. Tirar a lei do papel, é outra história, mas algumas iniciativas mostram que é possível avançar.
Mediadores se sentem despreparados atender pessoas com deficiência
Nos museus e centros de ciência, espaços estratégicos na popularização do conhecimento produzido na área, há lacunas no tocante às estratégias de acessibilidade, segundo estudo realizado em 2019, que contou com a resposta de 298 mediadores atuantes em 87 instituições distribuídas pelo país. Publicado na revista Interfaces científicas – humanas e sociais, o levantamento revelou que apenas um quarto do total dos mediadores participantes se sentia preparado para atender pessoas com deficiência.
Consultor Bruno Ramos (esq.), surdo e preofessor de Libras, no ensaio da peça. Foto: Museu da Vida.
Uma das autoras do estudo, Luisa Massarani avalia que, “apesar dos grandes esforços, ainda há um número gigantesco de brasileiros e brasileiras que não estão sendo envolvidos em ações de divulgação científica”. Segundo a pesquisadora, que atualmente coordena o Instituto Nacional de Comunicação Pública em Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), sediado na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), isso se dá por diversas razões, como a falta de atividades em determinadas regiões e por questões de pertencimento. “Há também pessoas com deficiências, para as quais muitas vezes ações de divulgação científica não são acessíveis e/ou os mediadores não se sentem suficientemente capacitados para recebê-las”, afirma.
Compreendemos que tínhamos de partir da experiência, da vivência, do conhecimento dessas pessoas para aprender e, aí sim, construir uma visita, uma atividade educativa inclusiva e acessível
Se a pesquisa tivesse sido realizada em 2006, Hilda da Silva Gomes possivelmente estaria entre as mediadoras ouvidas. À época, a hoje coordenadora da Seção de Formação do Serviço de Educação do Museu da Vida trabalhava com mediadora em uma exposição no prédio da Cavalariça, uma das edificações do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (Nahm), da Fiocruz, atualmente em processo de requalificação.
“Recebia os diferentes públicos da mesma forma”, recorda. Somente mais tarde, em contato com uma iniciativa de divulgação científica tocada por uma pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é que ela se deu conta das especificidades de alguns públicos, relata. Na iniciativa, chamada Projeto Surdos, estudantes surdos ou com deficiência auditiva acompanham a rotina de um laboratório de pesquisa, se apropriando do conhecimento científico lá produzido. A partir do interesse despertado, alguns alunos já se tornaram mediadores do Museu da Vida da Fiocruz.
Museus: acessibilidade não deve ser tarefa apenas dos setores educativos
“Foi assim que começamos a conhecer a necessidade de expandir os horizontes para receber diversos perfis de público. Compreendemos que tínhamos de partir da experiência, da vivência, do conhecimento dessas pessoas para aprender e, aí sim, construir uma visita, uma atividade educativa inclusiva e acessível”, relata Gomes, integrante do Museu da Vida no Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência. Desde 2017, a fundação conta com uma Política de Acessibilidade.
Hoje, inclusão e acessibilidade fazem parte da concepção dos nossos projetos. Isso passou de fato a ser prioridade para nós. O reflexo disso vem nos produtos que lançamos, como vídeos no YouTube e um aplicativo que vai nascer junto com a nova exposição da Cavalariça
Segundo ela, que é professora da especialização em Direitos Humanos, Acessibilidade e Inclusão, da Ensp/Fiocruz, um dos grandes desafios é fazer com que se entenda que a inclusão e a acessibilidade dizem respeito aos setores educativos dos museus, mas não exclusivamente. “Todos têm de se envolver quando for criar uma exposição, o designer, o técnico, a pessoa da museologia. Têm de pensar juntos: como vamos comunicar isso, por exemplo, para uma pessoa cega, uma pessoa surda?”
Dentro do Museu da Vida, o grupo de trabalho sobre acessibilidade, criado em 2014, tem auxiliado nas decisões para tornar as atividades no espaço mais inclusivas e acessíveis. Com a consultoria de pessoas com deficiência, o esquete teatral Conferência sinistra ganhou sessões com intérpretes de Libras, assim como O problemão da Banda Infinita, apresentada também com audiodescrição. A mesma atenção foi dada na elaboração da exposição Rios em movimento, que trouxe vários recursos acessíveis, como maquetes táteis e pentops, uma espécie de caneta que o visitante aponta para um objeto e ouve a sua descrição.
Websérie 'Conferência Sinistra' já nasceu acessível, em Libras e audiodescrição. Foto: Reprodução.
No Museu da Vida, produtos já nascem inclusivos e acessíveis
Os produtos digitais vão no mesmo caminho: duas webséries recém-lançadas contam com janela de Libras, legenda e audiodescrição, e vídeos com dicas culturais e contação de histórias têm como protagonistas duas bolsistas surdas que atuaram no museu. A equipe do museu conta ainda com um educador cego.
“Hoje, inclusão e acessibilidade fazem parte da concepção dos nossos projetos. Elas não chegam depois. Passou de fato a ser prioridade para nós. O reflexo disso vem nos produtos que lançamos, como vídeos no YouTube e um aplicativo que vai nascer junto com a primeira exposição da Requalificação do Núcleo do Patrimônio Arquitetônico Histórico de Manguinhos [Nahm], na Cavalariça”, adianta Heliton Barros, chefe do Museu da Vida, que está funcionando com atividades virtuais em decorrência da pandemia
Achei que um intérprete de Libras ia resolver tudo. Mas, além dos diferentes perfis, o próprio intérprete não sabia muitas vezes como traduzir, por não conhecer a área ou porque não havia muitos termos técnico-científicos em Libras
O aplicativo que vai auxiliar o visitante na montagem do roteiro de visitação pelo núcleo histórico, baseado em preferências pessoais e no tempo que se pretende passar no local, foi elaborado para usar a tecnologia já embutida em aparelhos de celular, que permite, por exemplo, que cegos possam acessar o conteúdo com um simples passar de dedo na tela. Até as cores e o tamanho do texto foram pensados para ampliar o acesso. “Usamos contrastes pensando nas pessoas que têm baixa visão. Além de letras maiores e textos menores, para quem tem dificuldades na comunicação”, detalha Barros.
A exposição que será inaugurada no prédio histórico da Cavalariça, sobre a saúde em diferentes escalas, foi planejada com uma série de recursos de tecnologia assistiva, como rampas, audiodescrição, suporte com mapas táteis, textos em braile, tudo isso pensando com a consultoria de pessoas com deficiência. “Eles têm um lema: nada sobre nós sem nós. Então, contamos com eles para nos ajudarem. Estamos avançando, mas queremos muito mais”, diz Barros sobre as ações para tornar o museu mais inclusivo e acessível.
Projeto criou glossário em Biomedicina em Libras
Lembra da pesquisadora da UFRJ que criou o Projeto Surdos, mencionada no início dessa reportagem? Aposentou-se, mas permanece dedicada ao tema. Integrante da equipe que fundou o Programa de Oncobiologia da instituição e pesquisadora sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Vivian Rumjanek é uma das autoras de artigo publicado ano passado no Journal of Science Communication, que analisou como os surdos foram informados sobre a Covid-19 em quatro diferentes meios de comunicação, no Brasil. A conclusão foi que os vídeos que disseminavam informação científica, além de poucos, apresentavam questões linguísticas que dificultavam o entendimento.
Mostra ExpoCâncer contemplou instalações com acessibilidade. Foto: Divulgação.
Quando Rumjanek iniciou o projeto de divulgação científica para surdos, em 2005, não tinha ideia da grande diversidade de perfis, mesmo entre os chamados surdos severos/profundos. Além dos sinalizantes, que usam a língua de sinais para se comunicar, o grupo inclui aqueles que conseguem ler e escrever, embora não sejam maioria, e os oralizados, que fazem leitura labial e falam, mas não necessariamente usam Libras.
A comunicação para o surdo é muito mais difícil porque ele não compreende tanto as analogias. Já [para] o cego, como tem a escuta, a compreensão é maior. Diante da enxurrada de negacionismo em relação à vacina e à Covid-19, eles ficam mais vulneráveis aos efeitos da desinformação
“Achei que um intérprete de Libras ia resolver tudo. Mas, além dos diferentes perfis, o próprio intérprete não sabia muitas vezes como traduzir, por não conhecer a área ou porque não havia muitos termos técnico-científicos em Libras. Então, iniciamos um processo de desenvolvimento de sinais. Criamos um glossário na área de Biomedicina em Libras. E assim o projeto foi crescendo”, diz, sobre a iniciativa que apresenta a estudantes surdos a rotina no Laboratório de Imunologia Tumoral do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis, da UFRJ. Por causa da pandemia, o projeto se mantém com encontros virtuais semanais.
Para a pesquisadora, embora nem todo mundo vá gostar de ciências, se tornar pesquisador e trabalhar em laboratório, é necessário abrir as portas. Pelo projeto passaram estudantes que se tornaram mediadores em museu de ciências, por exemplo. E também Schiaffino, que se formou jornalista, pesquisadora da área de Divulgação Científica e apresentadora de programas na TV Ines. Infelizmente, lamenta Rumjanek, a única emissora do Brasil com programação 100% transmitida em Libras e legendada saiu do ar em março por falta de verbas. Os recursos do Ines são repassados pelo Ministério da Educação.
Público mais vulnerável à desinformação
A jornalista Cláudia Jurberg também conhece bem a rotina no Laboratório de Imunologia Tumoral da UFRJ. Convidada a coordenar a comunicação de uma rende em câncer, ela acompanhava o dia a dia dos pesquisadores na bancada. E lá, junto com Rumjanek, foi percebendo que as dificuldades de comunicação dos surdos faziam com que certas informações fossem compreendidas de forma inadequada. À época, já doutora em Educação, Gestão e Difusão em Biociências, ela começou a desenvolver produtos de divulgação científica com uma linguagem que pudesse ser apreendida por surdos e ouvintes. Mais adiante, ampliou a ação para incluir cegos, em parceria com uma professora do Instituto Benjamin Constant, e foi uma das coordenadoras de uma exposição sobre prevenção do câncer, direcionada aos jovens e realizada com janela de Libras e audiodescrição.
“A comunicação para o surdo é muito mais difícil porque ele não compreende tanto as analogias. Já [para] o cego, como tem a escuta, a compreensão é maior”, avalia Jurberg. E essas dificuldades se tornam ainda mais preocupantes em uma situação de crise sanitária, como a que vivemos. “Diante da enxurrada de negacionismo em relação à vacina e à Covid-19, eles ficam mais vulneráveis aos efeitos da desinformação”, conclui ela, que é professora dos cursos de pós-graduação de Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e de Educação, Gestão e Difusão em Biociências, da UFRJ.
Para quem busca informações confiáveis sobre o novo coronavírus, fica a dica do Covid-19 Divulgação Científica. Iniciativa do Instituto Nacional de Comunicação da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), sediado na Casa, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o projeto compartilha vídeos nas redes sociais com janela de Libras, graças ao apoio do Comitê Fiocruz pela Acessibilidade e Inclusão das Pessoas com Deficiência e da Cooperação Social da Fundação. O caminho é por aí, mas a linha de chegada ainda está distante.