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‘Calar sobre o fascismo em nosso país equivaleria a calar sobre o que não queremos enxergar em nós mesmos’, diz Luiz Eduardo Soares

Em entrevista à Casa de Oswaldo Cruz, escritor, antropólogo e cientista político, que dá aula inaugural no dia 22, fala sobre temas centrais para a democracia

Karine Rodrigues

16 mar/2023

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Fascismo é um tema premente em um país onde, frisa Luiz Eduardo Soares, praticamente metade dos leitores “votou em um projeto fascista”. Convidado a abrir o ano letivo da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), na próxima quarta-feira, 22 de março, o escritor, antropólogo e cientista político retoma a questão em aula inaugural sobre A demanda por ordem ontológica e o fascismo no Brasil. O evento será realizado no Salão de Conferência do CDHS, às 10h, com transmissão ao vivo pelo canal do YouTube e tradução para Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Em entrevista à Casa, concedida no início desta semana, Soares, considerado um dos mais importantes especialistas em segurança pública do país, avalia que, atualmente, os problemas da área são mais graves do que os existentes no Brasil de duas décadas atrás, quando ocupava o cargo de Secretário Nacional de Segurança Pública, dando continuidade à experiência na gestão pública iniciada em 1999, como Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro: “A corrupção policial se expandiu e se materializou em agências autônomas poderosas, as milícias. Hoje, colhemos a tempestade que eu previra na época”.

Com destacada trajetória também no meio acadêmico, construída como professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade de Campinas (Unicamp) e visiting scholar em universidades norte-americanas (Harvard, Virginia, Columbia, Pittsburgh), Soares, durante a entrevista fala ainda sobre racismo, fake news, ditadura, movimentos sociais, assuntos igualmente fundamentais no Brasil de hoje e que, embora diversos, se tocam, pois remetem à importância de democracia e ao perigo que corremos quando ela está em risco.

Formado em Literatura, mestre em Antropologia e doutor em ciência política com pós-doutorado em Filosofia política, professor aposentado da Uerj, Soares está prestes a lançar o romance Enquanto anoitece, somando cerca de duas dezenas de títulos, entre ficção e não-ficção, que inclui, Meu casaco de general, Elite da Tropa e Elite da Tropa 2, O Brasil e seu duplo e Dentro da noite feroz – o fascismo no Brasil. Além disso, segue com suas análises, publicadas também em site pessoal e nas redes sociais, estuda, lê, pesquisa e diz que procura “manter a velha militância pelos direitos humanos”. E isso é patente e louvável.  Abaixo, a entrevista na íntegra.

O senhor, que é uma referência na área de segurança pública no país e já escreveu vários livros sobre o assunto, lançou, em 2020, “Dentro da noite feroz: o fascismo no Brasil”. De que forma essas duas temáticas se ligam?   

Ambas as temáticas se situam no centro da questão democrática, porque dizem respeito aos modos de pensar e agir sobre os direitos individuais e coletivos e suas garantias, sustentadas pelas agências coercitivas em articulação com os mecanismos da Justiça criminal, orientada pela política criminal que, supostamente, no Estado democrático de direito, encontraria suporte na vontade popular soberana. Ambas dizem respeito à relação entre Estado e sociedade, entre as instituições públicas e a sociedade, entre os poderes republicanos e o uso da força, cuja legitimidade é delegada e limitada, em última instância pela política, oriunda do voto e da participação popular. No Brasil, desde a promulgação da Constituição, em 1988, as polícias nunca foram comandadas pelo Poder político, civil, democrático, a despeito do que diz a letra da Lei. Antes, a ditadura mandava, ou seja, o Exército mandava. Depois, o artigo 144 constitucionalizou esta subordinação umbilical, amarrando as polícias ostensivas uniformizadas ao Exército, seja as obrigando a imitarem-no, organizacionalmente, seja as submetendo à sua inspeção e orientação -aqui, as determinações constitucionais se somam às normas infraconstitucionais, todas em contradição com os princípios sistêmicos afirmados na própria Constituição. Não tivemos Justiça de transição, nem mesmo transição, nas áreas da Defesa e da Segurança Pública. Criou-se, assim, um enclave institucional, formado pelas polícias, que permaneceram praticamente intocadas pelo processo de democratização. Por isso, a despeito de mudanças, variações e heterogeneidades, elas expressam as culturas corporativas do passado ditatorial, que, por sua vez, ecoava toda uma história que remonta à escravidão, isto é, ao racismo estrutural e à brutalidade de classes, para não falar no patriarcalismo. Tenho afirmado que, apesar das diferenças entre regiões e períodos políticos, as polícias brasileiras, hegemonicamente, eram bolsonaristas avant la lèttre, bolsanaristas antes de Bolsonaro, cuja liderança apenas inscreveu na política os valores antidemocráticos, racistas e misóginos que já dominavam a intersubjetividade e as práticas, nesse campo.

Em torno de um mesmo eixo é que, ao menos em parte, giram as matrizes da segurança pública racista e classista e o fascismo brasileiro: produção da identidade via definição belicista do inimigo; exaltação da violência como apanágio do poder patriarcal e negação da política; confusão entre vingança e justiça; reverência idólatra ao ódio, à morte e à tortura; devoção insurrecional à promoção do caos e do sofrimento, com vistas à abolição do mal e à expiação de seus portadores; substituição da legitimidade democrática pela auto-afirmação do poder, que se autoriza a si mesmo pelo exercício puro e simples da força, repelindo mediações; e a recusa ao controle externo e à natureza comedida -ou seja, comprometida com a vida e com os direitos humanos- do uso da força.

Qual a importância de se falar sobre o fascismo nos dias de hoje para uma turma de estudantes de pós-graduação em História?  

Falar sobre o fascismo é falar sobre o Brasil. Metade do país votou em um projeto fascista. Sua derrota eleitoral está longe de tê-lo esgotado e sepultado. O fascismo à brasileira retoma as bandeiras do movimento Integralista dos anos 1930, combinando-as à agenda neoliberal e introduzindo novas conexões religiosas, novas técnicas de comunicação e mobilização, e novos apelos geopolíticos. Calar sobre o fascismo em nosso país equivaleria a calar sobre o que não queremos enxergar em nós mesmos. O que o vigor do bolsonarismo nos ensina sobre nossa história, nosso país, hoje, e a democracia que pensávamos estar construindo? Essas são perguntas-chave.

No Brasil, fascismo tem sido usado como termo sinônimo ao bolsonarismo. Isso é dar nome aos bois ou uma forma equivocada de analisar a realidade?   

Coitados dos bois. Eles têm sido associados à devastação ambiental, aos ataques às sociedades originárias, ao agronegócio predador. Mas, aqui, vale a expressão: tratar o bolsonarismo como fascismo é, sim, a meu juízo, dar nomes aos bois. Isso não significa que se esteja sugerindo um anacronismo, ou seja, que estejamos propondo considerar iguais experiências separadas por quase um século de história, cujos contextos de emergência são inteiramente diferentes. O fascismo e o nazismo nasceram e prosperaram numa Europa varrida pela primeira guerra mundial, quando o capitalismo enfrentava crises profundas e era confrontado pelo movimento comunista internacional, nutrido pelo fortalecimento da União Soviética. Nosso mundo é completamente diferente, embora algumas analogias sejam possíveis. O compromisso do fascismo com o capital era mediado pela adoção do modelo corporativista de organização social, econômica e política. Nada mais distante do neoliberalismo. Entretanto, vozes importantes do liberalismo da época aderiram ou admitiram apoiar o nazifascismo, naquele período, em nome da destruição de tudo o que limitasse o “mercado” e a voracidade do capital. Se a propriedade privada e o livre mercado fossem preservados ou estabelecidos, a mais bárbara ditadura seria tolerada e até mesmo exaltada. Isso não aconteceu apenas antes da segunda guerra. Lembremo-nos do Chile de Pinochet e dos experimentos imperiais estadunidenses na América Latina, desde os anos 1960 e 70. Os economistas da chamada Escola de Chicago orientaram a implantação do modelo neoliberal, sob Pinochet, no momento em que o Consenso de Washington ainda se forjava, sob a liderança de Reagan e Thatcher. Somente a partir do fim da guerra fria, o novo padrão de dominação do capital, crescentemente globalizado e financeirizado, se impôs em sua, digamos, plenitude -plenitude sanguinária, eu ousaria dizer. Enquanto o mundo era dividido por duas superpotências, o arranjo social-democrata era necessário, para bloquear o poder de atração do polo soviético e domesticar os movimentos dos trabalhadores. Encerrada a era bipolar, o capitalismo passaria a prescindir de cautelas e pudores, mediações, regulações, limitações, garantindo algum nível de distributivismo, direitos e benefícios aos mais pobres. As explosões sociais não ofereceriam maior perigo, nada que não pudesse ser contido com polícia e prisões. O grande mecanismo de controle seria o fim do emprego, a insegurança, o drama da miséria como realidade ou perspectiva. O poder de chantagem do capital é muito maior do que qualquer ameaça de repressão. Disseminou-se também um certo tipo de individualismo meritocrático, endossado pela chamada cultura da autoajuda e por determinadas tradições evangélicas. Um lado passou a ser medo e incerteza, o outro, expectativa de integração mesmo subalterna, rendendo bônus em status e acesso ao consumo. Essa, digamos, compensação vai até certo ponto, não é infinitamente elástica. A partir de certo ponto, rompe-se em crises sucessivas, profundas e multidimensionais, que se fecundam, reciprocamente. Até porque, na outra margem, florescem movimentos sociais vibrantes e diversos, denunciando a perversidade desse quadro e apontando alternativas. Não são mais os sindicatos, ou apenas eles. São feministas, LGBTQIA+, antirracistas, etc. O contexto se complexifica. Além disso, a disputa eleitoral começa a desestabilizar a dinâmica de reprodução do capital, em sua lógica espoliadora exponencializada. O jogo fica mais pesado e as classes dominantes começam a abandonar veleidades democráticas. Aceitam a mais deslavada boçalidade, a brutalidade mais extrema, viram o rosto para não corar, lavam as mãos, e o neofascismo sai do armário, limpa o bolor do uniforme, e se afirma como uma das faces do capitalismo contemporâneo. Fascismo é neoliberalismo no osso, sem mediações: o projeto revolucionário da destruição. Ele está sendo retomado – e atualizado, adaptado – porque, ao contrário das velhas ditaduras militares, tem capacidade de mobilizar setores populares expressivos. E aqui está o busilis: como essa sensibilização popular tem sido possível? O que é que temos de repensar sobre as teorias sociais para compreender esse fenômeno? Em síntese, sustento que é legítimo classificar o bolsonarismo como variação da família político-ideológica que denominamos fascismo, família que admite muitas variações, assim como foram chamados socialistas, nos anos 1980 e 1990, projetos, movimentos e governos europeus que pouco tinham a ver com seus pares nos anos 1920, por exemplo. As afinidades foram suficientes para justificar a integração à mesma linhagem. Além disso, gostaria de acrescentar o seguinte: nada mais falso e perigoso do que adotar uma classificação benigna que normalize o bolsonarismo. Adjetivos como populista ou direitista têm servido para neutralizar sua diferença radical e edulcorar sua natureza brutal. Ao longo dos últimos quatro anos, foi muito comum ler na imprensa ou ouvir na TV comentários que consideravam Lula e Bolsonaro representantes de posições extremas, como se fossem deslocamentos em rumos opostos sobre um mesmo plano, ou gradações sobre uma linha contínua, duas expressões de um mesmo fenômeno: o populismo ou o extremismo. A distinção profunda de natureza entre as posições dessa forma se diluiu. Se a mídia tratasse o bolsonarismo como fascismo ou neofascismo, sinalizaria sua natureza distinta e impediria que se naturalizassem os apoios, as alianças, as adesões.  Portanto, não se trata apenas de uma questão conceitual ou epistemológica, ela é essencialmente política.

As fake news propagadas pela máquina bolsonarista estão cotidianamente “reinventando passados”.  Há grupos organizados e financiados, numa estrutura de grandes dimensões. O senhor considera ser possível fazer com que pelo menos parte dos que compartilham essas notícias tenham uma postura crítica em relação ao que recebem? Como a História pode contribuir nesse processo?   

Essa pergunta é decisiva e é minha também. Duvido que alguém tenha a resposta. Seria fácil se o problema se reduzisse a desinformação. Ora, se as pessoas estão recebendo informações falsas, bastaria fazer chegar a elas as correções necessárias. Esse tipo de formulação do problema traz consigo a solução, mas não se sustenta, justamente porque não há mais a hipótese de trabalharmos com o velho conceito iluminista de uma razão (habitando cada consciência individual) à espera do esclarecimento e sempre disposta a se reconciliar com a verdade das coisas como realmente são. Afinal, a epidemia Freud, a avalanche Freud chega à “ciência política”. Somos abismos de linguagem e desejo, povoados de fantasias e fobias, construindo realidades enquanto nos relacionamos, sob tensões diversas, com alteridades que nos interpelam, desafiam, e que também somos nós. Literatura, arte, ficção, cinema, mitologias, imaginação: vamos chamar para essa conversa, com muita humildade e genuína abertura autocrítica, quem ficou de fora do sarau pretensiosamente intelectualizado nas cortes acadêmicas. Até que ponto o esforço antropológico anticolonial de relativização dos saberes ajudou a erodir barreiras que freavam as ousadias negacionistas? Por outro lado, a crítica aos positivismos era e é indispensável. Figuras como diálogo e razão argumentativa perderam credibilidade e prestígio, enquanto contratualismos pragmático-performativos talvez estejam se credenciando para recolocar no jogo a velha dialogia. O fato é que política não pode mais ser pensada sem a ampla problemática da intersubjetividade. A teoria dos jogos foi a culminância do sonho racionalista e positivista, que acoplaria o individualismo neoliberal utilitário à ciência, fundando uma utopia (ou sua negação) rebatida sobre a épura do presente. Culto chique à resignação. O que sei -até onde faça sentido a audácia de saber, no meio socia l- é que não avançaremos enquanto não trocarmos o debate sobre conteúdos nas redes pela discussão a respeito da arquitetura da comunicação, ou seja, como diz Bruno Torturra: a respeito dos mecanismos de difusão das mensagens, as lógicas dos algoritmos e a dinâmica política de seu controle.

Em março de 2000, o senhor foi exonerado do cargo de coordenador de Segurança e Cidadania pelo então governador do Rio, Anthony Garotinho, após ter denunciado a existência de uma “banda podre” no comando da polícia. Na época, o senhor decidiu sair do país em razão de ameaças, mas seguiu atuando na área de segurança pública. Qual a sua avaliação sobre a política de segurança pública atualmente, considerando o contexto nacional e estadual?  

A situação se agravou. A corrupção policial se expandiu e se materializou em agências autônomas poderosas, as milícias. Se, antes, a autorização para as execuções extrajudiciais incrementava o processo de autonomização inconstitucional, que a gestação do enclave -citado na primeira resposta- havia hipertrofiado, hoje, colhemos a tempestade que eu previra na época. Em termos nacionais, o que temos? (A) Homicídios dolosos em grande escala, cerca de 50 mil ao ano, vitimizando sobretudo jovens negros e jovens pobres. (B) Taxas baixíssimas de elucidação dos homicídios e impotência preventiva. (C) Encarceramento em massa de negros e pobres, sobretudo por participação no varejo do comércio de substâncias ilícitas. (D) A imensa maioria das prisões se dá em flagrante, porque a PM é proibida de investigar e pressionada a prender, o que a leva a recorrer à infame, hipócrita e irracional Lei de Drogas, como seu principal instrumento. O resultado é a prisão de pequenos varejistas, que já respondem por cerca de 40% dos quase 900 mil presos (temos a terceira população carcerária do mundo e a que mais cresce, desde 2001). (E) Nessa tenebrosa guerra às drogas, todos perdem, inclusive muitos policiais e as comunidades. (F) Nas unidades prisionais, como a LEP (Lei de Execuções Penais) raramente é cumprida, mandam as facções criminosas. Quem chega precisa de sua proteção, a qual será comprada com a promessa de lealdade e vinculação, subsequentemente à saída da prisão, cinco anos depois. (G) Conclusão: o país está alimentando as facções com mão de obra barata, ao preço da destruição de gerações e suas famílias. Isso se deve ao casamento perverso entre o modelo policial que herdamos da ditadura e a Lei de Drogas, esse desastre que promove banhos de sangue absolutamente inúteis, aprofundando o racismo e as desigualdades. Alguma racionalidade nas operações policiais cariocas? O que há é o endereçamento da abjeção social. Ou seja, a operação é racista e socialmente abjeta, não controla, não reduz criminalidade, sequer desacelera o tráfico. (H) A flexibilização do acesso a armas foi um desastre, intensificando ameaças à democracia e à vida, contribuindo para o crescimento dos crimes de ódio, em especial os feminicídios. (I) A segurança privada continua sendo um imenso desafio sobre o qual paira pesado silêncio.

Quais as suas expectativas em relação ao governo Lula em relação à área de segurança pública? Diante da sua experiência, sugere caminhos que, a seu ver, obrigatoriamente precisam ser percorridos para alcançar melhoria em uma área tão sensível?   

Ainda aguardo pronunciamento do governo federal democrático e progressista, eleito em 2022, sobre a agenda mínima: modelo policial; encarceramento em massa; política de drogas; respeito à LEP no sistema penitenciário; valorização profissional dos policiais; subordinação do enclave ao controle democrático que a Constituição estabelece; negociação com o MP, visando o sempre negligenciado cumprimento de sua obrigação de exercer o controle externo da atividade policial; controlar a segurança privada e prevenir a epidemia de homicídios, prevenção indissociável do controle das armas e do tráfico de armas. Mas, justiça seja feita: o ministro Silvio Almeida já trouxe à baila o tema das drogas, numa perspectiva crítica, corretíssima. 

Em 1999 e 2000, quando o senhor tentou colocar em prática um novo modelo para a política de segurança no Estado do Rio, as milícias estavam engatinhando. Mais de duas décadas depois, como você vê a expansão das milícias? O modo miliciano de ser extrapolou a esfera policial?  

Não havia milícias, na época. Havia embriões, que chamávamos “Polícia Mineira”. Eram espasmos de autonomização inconstitucional, expressões hiperbólicas, na ponta, banhadas em sangue e marcadas pela corrupção, da autonomia ilegal que caracteriza o que tenho denominado enclave. Enclave institucional porque refratário à Constituição, aos direitos humanos e à autoridade civil, política, republicana. Esses nichos existiam sob nomes diversos, sempre com a cumplicidade ou o beneplácito, por vezes o estímulo direto, das autoridades superiores. Eram os Esquadrões da Morte, a Scuderie LeCocq, etc… Esses nichos se desenvolvem, aprendendo que podem extrair mais lucros se ocuparem o lugar do tráfico de drogas, em vez de apenas tornarem-se sócios. Ocuparem o lugar não só para comercializar as substâncias ilícitas, mas para impor taxas ilegais a todas as atividades econômicas, a todos empreendimentos locais, da venda de gás ao transporte, do comércio aos imóveis. As milícias crescem e percebem que podem transformar o domínio territorial em pretensões político-eleitorais, e assim aprofundam sua imersão na institucionalidade. Vieram das polícias, ainda se ligam a elas, conformam com ela constelações para-institucionais complexas, em que choques de interesse e alianças se articulam e se confrontam.

Em 2021, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 6.145 pessoas foram mortas por intervenções de policiais civis e militares em serviço ou fora dele. O levantamento apontou também que a taxa de pessoas negras mortas pela polícia cresceu 5.8%. No país, parte da população compra o discurso da violência e acusa o “pessoal dos direitos humanos” de proteger bandido. Por qual razão a mentalidade de resolver os problemas por via da violência persiste?  

Se eu soubesse, muitos outros e muitas outras já saberiam, e nós provavelmente teríamos superado esse dilema. Precisamos repensar o que sabemos sobre a sociedade brasileira. Por isso, remeto à primeira resposta. Seguindo esse fio, vamos dar no fascismo e em suas condições socioculturais e político-econômicas de possibilidade.

Na invasão do Congresso Nacional ocorrida nos primeiros dias do governo Lula, a polícia pode ter sido omissa e complacente com os manifestantes. Sabemos que, na corporação, é grande o apoio a Bolsonaro. Mas o corporativismo não explica totalmente esse cenário, correto?  

Correto. Como disse, os valores e as práticas predominantes no universo policial brasileiro, a despeito das enormes variações, nos foram legados por toda uma história que se estende à escravidão e ao modo de configuração colonial da sociedade brasileira. Essa triste história foi condensada nos porões da ditadura. Não tendo havido transição, na reconstrução democrática, nos anos 1980, herdamos a arquitetura institucional, o modelo policial, e a cultura corporativa que também formou ex-agentes da ditadura, como Bolsonaro. Portanto, a identificação com o personagem canhestro e sua ideologia estava dada, historicamente. Nesse sentido, massas significativas de policiais eram bolsonaristas antes e independentemente de Bolsonaro, cujo papel foi lhes oferecer representação política, encarnar esse “espírito” comum e inscrevê-lo na institucionalidade política. 

O Senhor já escreveu que “a violência policial contra pobres e negros é absolutamente chave para a democracia”. Se formos considerar exclusivamente essa questão, o Brasil já tem dados de sobra para apontar quão precária é a nossa democracia. Qual a importância das chamadas pautas identitárias para a democracia?  

De meu ponto de vista, elas são importantes porque, ao menos em suas principais manifestações, não são “identitárias”. Esse é um modo muitas vezes involuntário de diminuir essas pautas e esses movimentos. Eles dizem respeito à grande revolução libertária que redefine a experiência da individuação, transcendendo o individualismo e radicalizando o sentido da agência humana, ou seja, da liberdade e da imaginação, explodindo a compulsão neurótica ao controle e à classificação. Paralelamente, ou melhor, de modo articulado, combinam essa caminhada à defesa de direitos democráticos fundamentais e promovem novos modos criativos de agregação.

Sabemos também que a corporação policial não é um todo homogêneo e que, além disso, há diversas questões relacionadas ao trabalho na polícia que são fontes de adoecimento mental. Os baixos salários e o estado constante de atenção, entre outros fatores, provocam desgastes. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, o suicídio entre policiais cresceu 55% entre 2020 e 2021. Quais caminhos seriam viáveis para sentirmos mais respeito e admiração pela polícia?  

Policiais são trabalhadores e cidadãos. É preciso ouvi-los, levar a sério suas reivindicações, compreender que os regimentos disciplinares das PMs, em geral, são tirânicos. Muitas vezes, esses regimentos dão mais importância a detalhes formais e internos do que ao cumprimento das tarefas junto à sociedade. Os policiais militares são proibidos de se manifestar e se organizar, suas vozes são caladas. Isso é tão injusto e nocivo, que o tiro sai pela culatra, para empregar uma metáfora apropriada: explodem greves selvagens, multiplicam-se manifestações de teor eminentemente fascista nas redes sociais e se normalizam comportamentos agressivos, os quais, não raro, parecem indicar a personalização de atritos em que deveriam atuar como profissionais, a conversão em ódio pessoal do que deveria estar marcado pelo distanciamento técnico. As condições de trabalho muitas vezes são indignas. Como esperar respeito de quem não é respeitado por sua própria instituição? Como cobrar profissionalismo, quando não se é tratado desse modo por governos e corporações? Além da melhoria das condições de trabalho, seria indispensável investir em atendimento ao sofrimento psíquico, que é constante e crescente. Quanto à população, creio que ela só passará a desenvolver uma percepcão positiva sobre as polícias quando as fizerem por merecer.

Argentina, 1985, que concorreu este ano ao Oscar de melhor filme estrangeiro, narra o processo que levou o país a ser o único da América Latina a julgar e condenar os principais líderes da ditadura por crimes contra a humanidade. Em que medida essa responsabilização foi e é importante para a manutenção da democracia e de que forma o perdão ocorrido no Brasil aos responsáveis por crimes cometidos durante o regime militar pode estar associado ao negacionismo, tão presente no movimento bolsonarista?  

A meu ver, a responsabilização teria sido fundamental e, provavelmente, teria impedido que o passado retornasse, nos assombrando, como ocorre quando violações graves e tragédias não são devidamente elaboradas. Na ausência da elaboração, o que emerge é o trauma, o sofrimento sem nome e lugar, que insiste em nos desestabilizar e desordenar a coletividade. Não culpo os negociadores que atuaram na transição, porque a correlação de forças não favorecia avanços. Aceitou-se o possível, sacrificando-se o ideal, talvez na esperança de que viessem a surgir oportunidades futuras de responsabilizar torturadores e assassinos, em melhores condições de fazer valer uma verdadeira Justiça de transição. Isso não aconteceu, infelizmente. Hoje, pagamentos o preço. O mais importante, de meu ponto de vista, nem seria propriamente a responsabilização individual, mas o reconhecimento público e transparente das responsabilidades políticas da ditadura. Que nos sirva de lição para o futuro.

O senhor tem uma formação em diferentes áreas do conhecimento. Graduação em Letras, mestrado em Antropologia Social, doutorado em Ciência Política e pós-doutorado em filosofia política.  De que forma essas escolhas impactaram na sua trajetória?   

Essa é a pergunta impossível, ou de resposta impossível. Minha história sou eu. Tudo isso está tão ligado a mim, ao que faço, ao modo como me vejo, que não me sinto em condições de assumir a distância necessária para responder. Talvez o futebol tenha sido mais importante, ou a música, ou a psicanálise, ou os livros que li, os filmes e peças que vi, os crimes que presenciei, as histórias que testemunhei, ou os afetos, as pessoas que me ensinaram a ser, pensar e agir. Não sei.

Em “Meu casaco de general”, o senhor relata que, já nos primeiros meses no governo Garotinho, se deu conta de divergências entre o seu modo e o modo dele de pensar a segurança pública. No entanto, conta ter permanecido na gestão para “desenvolver o trabalho na prática”, adquirir experiência, pois “temia ser visto como um teórico, um romântico”. O que essa experiência revelou para o senhor sobre essa separação entre teoria e prática?  

Vou ao clichê: não há uma sem a outra. Iria mais longe: teoria é uma prática e não há prática cuja inteligibilidade prescinda de teoria, mesmo que ela não seja consciente. Por isso, a primeira tarefa da teoria é elucidar a teoria entranhada na prática, se ela não for consciente, e questioná-la, se for. Assim, a prática teórica se aplica sobre as ações e, se também a teoria é prática, sobre si mesma, reflexiva e autocriticamente. A prática mais radical e necessária é a autocrítica. Essa é a vacina auti-dogmatismo. O dogmatismo é a morte da teoria e a esterilização da prática. Não por acaso, o dogmatismo está sempre ligado à arrogância e ao autoritarismo -à onipotência, à onisciência. Se me permite, vale até uma citação bíblica, numa perspectiva nada ortodoxa: o pecado dos pecados foi a Hybris, não foi?

O senhor é professor aposentado da Uerj, com reconhecida carreira acadêmica no Brasil e no exterior, experiência em políticas públicas, vasta produção em livros de não ficção e também autor de obras ficcionais. Como é a sua rotina hoje?  

Estou na batalha para pagar as contas. O seguro saúde sobe com a idade. As necessidades não dão descanso. Fora disso, escrevo, estudo, leio, ouço colegas, pesquiso, falo quando me convidam, tento ser positivo com a família e amigos, e procuro manter a velha militância pelos direitos humanos, que só existe em coletividade. Nada especial, nada glamoroso, cotidiano de trabalhador.