Arte: Silmara Mansur |
Por Glauber Gonçalves e Haendel Gomes
No começo do século 20, um conjunto de doenças com manifestações clínicas diferentes entre si colocou uma questão desafiadora aos médicos pasteurianos, defensores da chamada doutrina do agente etiológico único. De acordo com essa formulação, cada doença tinha um agente causador específico. Esse grupo de doenças tropicais que inquietava a comunidade científica, porém, era causado por protozoários morfologicamente indistinguíveis com os recursos disponíveis à época.
O esforço para demonstrar a existência de uma nova doença tropical autóctone era também motivado pela preocupação em resgatar os tempos de glória do Instituto Oswaldo Cruz
Enquanto uma delas – o botão do Oriente – tinha caráter dermatológico, com curso clínico brando e tendência a cura espontânea, a outra era agressiva. O calazar caracterizava-se por sua incidência visceral e progressão rápida, com índice de mortalidade elevado. Para acomodar essa anomalia à doutrina, criou-se, então, em 1906, um grupo que passaria a abarcar essas doenças, as leishmanioses, uma referência a seus agentes causadores, as leishmanias.
Ao longo do século passado, essas enfermidades e seus patógenos foram objetos de intensas pesquisas e de controvérsias que colocaram o Brasil e a América Latina em posição de protagonismo mundial por sua produção científica nesse campo. Esses pesquisadores e instituições tiveram papel preponderante no processo de globalização da medicina tropical por meio das pesquisas sobre as leishmanioses e as respectivas leishmanias encontradas nessas regiões.
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Gaspar Vianna no Pavilhão Mourisco. Foto: Acervo COC/Fiocruz. |
É o que argumentam os historiadores Jaime Benchimol e Denis Jogas, autores do livro Uma história das leishmanioses no Novo Mundo, lançado hoje pela Editora Fiocruz. Escrita a partir de sólida e abrangente pesquisa histórica, a publicação traz novas evidências que põem em xeque narrativas que atribuem a atores não-europeus um papel marginal na produção de conhecimento científico no decorrer do século 20.
Os estudos sobre as leishmanioses realizados pelo médico Gaspar Vianna e outros pesquisadores brasileiros que o sucederam são emblemáticos dessa inserção nos fluxos internacionais de produção de conhecimento. O jovem cientista do Instituto Oswaldo Cruz foi quem descreveu o agente patológico da leishmaniose cutânea, que batizou de Leishmania braziliensis. A doença havia chamado a atenção de pesquisadores em 1908, quando um surto atingiu operários que trabalhavam na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que interligaria São Paulo a Mato Grosso.
Um dos principais feitos de Vianna foi identificar o composto utilizado no tratamento dessas doenças – o tártaro emético (antimônio trivalente) –, cujo uso salvou inúmeras vidas, em particular na Índia, país onde o calazar fazia muitas vítimas. Tratamentos com base em compostos antimoniais como o prescrito por Vianna são ainda hoje a principal forma de combate à leishmaniose.
Leishmania braziliensis: validação da espécie foi marcada por disputas
Vianna morreu em 1914, aos 29 anos, em decorrência de um incidente trágico. Durante uma necropsia, seu rosto foi atingido por um jato do líquido depositado em uma cavidade torácica do corpo de um paciente de tuberculose. Em pouco tempo, o cientista apresentou os sintomas da doença, à qual não resistiu. Sua morte prematura o impediu de ter, em vida, o reconhecimento da comunidade científica internacional à espécie que descrevera.
A produção de evidências arqueológicas para respaldar a teoria de que as leishmanioses cutâneas e mucocutâneas americanas eram autóctones contribuíram para a crescente aceitação internacional do conceito de leishmaniose tegumentar americana
“[Inicialmente], ninguém deu atenção à [proposição da] Leishmania braziliensis. Ela foi recebida com grande ceticismo tanto nos círculos médicos nacionais quanto nos estrangeiros”, afirma Jogas. Um dos motivos da descrença foi o fato de que o elemento utilizado por Vianna ao propor a espécie Leishmania braziliensis não se comprovou: o aspecto morfológico que o cientista classificou como diferencial dessa espécie, na verdade, estava presente em todas as leishmanias. Isso não impediu que a Leishmania braziliensis fosse validada no futuro a partir de outros elementos.
O caminho para esse reconhecimento, porém, foi longo e envolveu o trabalho de outros cientistas brasileiros. Um desses personagens foi o médico baiano Alfredo da Matta. “Depois da morte de Gaspar Vianna, ele fez um trabalho para publicar em revistas de diferentes nacionalidades no qual associa os tipos de leishmanias e leishmanioses que elas causavam, dando grande protagonismo para a Leishmania braziliensis”, explica Jogas.
Em seu trabalho, da Matta se opunha aos médicos franceses que tentavam emplacar outra nomenclatura para o protozoário descrito por Vianna: Leishmania tropica var. americana. “Da Matta dizia que a Leishmania tropica var. americana nada mais era que a Leishmania braziliensis em suas formas mucocutâneas. O trabalho dele trouxe novos argumentos e deu um gás ao processo de reconhecimento da Leishmania braziliensis”, avalia o historiador.
A busca pela validação não se deu sem tensões. É ilustrativa dessas disputas uma defesa contundente da nomenclatura de Gaspar Vianna feita por Arthur Neiva, do Instituto Oswaldo Cruz, na Conferência da Sociedade Sul-Americana de Higiene, Microbiologia e Patologia, realizada em Buenos Aires em 1916. Na ocasião, Neiva disse estranhar o fato de que muitos médicos franceses não assumissem a denominação de Leishmania braziliensis. Se tantos os pesquisadores europeus quanto os latino-americanos não conseguiam identificar uma característica diferencial à espécie, Neiva questionou por que o protozoário deveria inteirar o nome defendido pelos franceses, já que a proposta de Vianna era anterior.
A validação da espécie viria somente em 1944, 33 anos após a proposição de Gaspar Vianna. A consolidação se deu a partir do trabalho do parasitologista Samuel Pessoa, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Como resultado dos trabalhos de uma comissão de estudos das leishmanioses no interior paulista, coordenada por ele, o médico produziu um grande compêndio sobre essas doenças, sobretudo as que ocorriam no continente americano.
“Sua adesão à Leishmania braziliensis proposta por Gaspar Vianna e a produção de evidências arqueológicas para respaldar a teoria de que as leishmanioses cutâneas e mucocutâneas americanas eram autóctones contribuíram para a crescente aceitação internacional do conceito de leishmaniose tegumentar americana”, explica Benchimol.
Febre amarela abriu caminho para pesquisas sobre a leishmaniose
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Evandro Chagas. Foto: Acervo COC/Fiocruz. |
Outro personagem importante na história das leishmanioses foi Evandro Chagas, filho e discípulo de Carlos Chagas. O médico foi designado pelo pai para investigar as mortes identificadas em meio a pesquisas de rotina relacionadas ao Serviço Cooperativo de Febre Amarela, que mantinha um laboratório de análise de fragmentos de fígado de vítimas da doença. Em 1934, nesse laboratório, na Bahia, onde era analisado material colhido no Norte e no Nordeste do Brasil, o patologista Henrique Penna identificou protozoários do gênero Leishmania.
Para abrigar os estudos de Chagas sobre a leishmaniose visceral na Amazônia, criou-se em 1936 o Instituto de Patologia do Norte, em Belém (PA). “O esforço para demonstrar a existência de uma nova doença tropical autóctone era também motivado pela preocupação em resgatar os tempos de glória do Instituto Oswaldo Cruz, que atravessava um momento de grandes incertezas no governo [Getúlio] Vargas”, afirma Benchimol. Nas décadas anteriores, a instituição – embrião da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – se notabilizara pela descoberta da doença de Chagas e pelo bem-sucedido combate a epidemias que assolavam o Rio de Janeiro, então capital federal.
Evandro Chagas também comandou o Serviço de Estudo das Grandes Endemias (Sege). Nesse posto, o cientista “revigorou a importância do Instituto [Oswaldo Cruz] nas decisões do Estado relacionadas à saúde pública”, avalia Benchimol. O trágico acidente aéreo que o vitimou em 1940, na Baía de Guanabara, no entanto, interrompeu a fase de ascensão da Instituto de Patologia do Norte, que mais tarde seria rebatizado com o nome do cientista. Os estudos sobre leishmaniose visceral na instituição paraense, porém, foram desacelerados.
Epidemia de leishmaniose visceral no Ceará
Em 1953, uma grande epidemia de leishmaniose atingiu o Ceará. A doença foi localizada inicialmente em municípios do norte do estado graças aos diagnósticos feitos por um médico de Sobral, Thomas Correa Aragão, e um farmacêutico de Viçosa do Ceará, Felizardo de Pinho Pessoa Filho. Cientistas e autoridades sanitárias do estado nordestino e de São Paulo mobilizaram-se para combater e estudar a leishmaniose visceral, que passou a ser conhecida como ‘calazar’, palavra usada até então somente na Índia e outras partes da Ásia.
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Felizardo de Pinho Pessoa Filho. Foto: Acervo familiar. |
Após formar-se em Farmácia, Felizardo de Pinho Pessoa Filho assumiu os negócios da família: a Farmácia Pinho & Irmãos. Curioso e autodidata, dedicava-se ao estudo das ciências médicas e não raro colocava o que aprendia em prática para socorrer pacientes. Ao examinar algumas crianças da localidade de Ubari, o farmacêutico suspeitou que elas tinham leishmaniose visceral. Ele identificou ainda a ocorrência de flebótomos, insetos responsáveis pela transmissão da doença a homens, cães e raposas. Suas constatações levaram-no, então, a alertar as autoridades sanitárias sobre o surto.
A observação da doença em seres humanos por Pessoa Filho se deu de forma inusitada. Como as famílias se recusavam a deixá-lo realizar a cirurgia para retirada de amostra do tecido do fígado e do baço atingido pela doença, ele aceitou uma proposta do pai de uma das vítimas: “Faço com uma condição, disse então o pai de Francisco. Se o senhor mandar fazer o enterro dele com uma banda de música e convidar muito menino daqui da praça, com um caixão bem bonito”, teria dito.
Feito o acordo, Pessoa Filho coletou o material e o despachou para São Paulo, para Samuel Pessôa, chefe do Departamento de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP, que enviou para o Ceará o casal Leônidas e Maria Deane, ex-colaboradores de Evandro Chagas. "Corroborando o achado do farmacêutico de Viçosa, os parasitologistas paraenses identificaram a raposa como hospedeiro de Leishmania, confirmando o reservatório silvestre que Evandro Chagas tanto buscara para fundamentar a autoctonia da leishmaniose visceral americana e de seu agente, a Leishmania chagasi”, explica o pesquisador Jaime Benchimol.
Ninguém tinha dúvida de que a epidemia era em larga medida determinada pelas condições socioeconômicas dos trabalhadores rurais
Contudo, as demais observações feitas no Ceará abalaram seriamente aspectos fundamentais da teoria defendida por Evandro Chagas na década de 1930, segundo a qual a leishmaniose visceral encontrada na América do Sul era uma doença específica desse continente, diferentemente do calazar, que atingia países da Ásia e África. “Tinha-se agora uma doença que independia das matas. Podia ocorrer em zonas urbanas e rurais com caráter focal’, sendo a transmissão urbana comprovada por doentes e sobretudo cães que se infectavam nas cidades”, ressalta Benchimol.
Em 1953, foi instituída uma Campanha contra a Leishmaniose Visceral no Ceará sob a chefia de Joaquim Eduardo de Alencar, um dos fundadores, em 1947, da Faculdade de Medicina daquele Estado. Ela apoiou-se num tripé. Como na Índia e em outras partes do mundo, a doença foi combatida por meio de dedetizações domiciliares feitas por guardas do Serviço Nacional de Malária. A ação envolveu também a descoberta e eliminação de casos caninos. “Ninguém tinha dúvida de que a epidemia era em larga medida determinada pelas condições socioeconômicas dos trabalhadores rurais. Atribui-se a Alencar um comentário muito significativo: ‘A leishmaniose é uma doença de cães e daqueles que levam vida de cão’”, diz o pesquisador Jaime Benchimol.
Embora as pesquisas indicassem que a profilaxia deveria incluir a melhoria das condições de vida das populações atingidas, na prática, limitou-se ao tratamento com os antimoniais então disponíveis, especialmente o Glucantime, fornecidos gratuitamente a hospitais e postos de saúde.