Estudo analisa as causas do retrocesso da política nacional de Aids, considerada modelo na história da saúde global
Arte: Silmara Mansur. |
Por Karine Rodrigues
Imagine uma doença desconhecida que se espalha pelo mundo causando perplexidade, sofrimento e mortes; que, diante do primeiro sintoma, isola e amedronta; uma infecção incurável, causada por um vírus nomeado por uma combinação de letras. O que fazer diante disso? No Brasil, o Ministério da Saúde estabeleceu ações com os governos estaduais e municipais, fez campanhas para alertar sobre as formas de prevenção, firmou parcerias com organizações sociais e agiu para garantir acesso universal e gratuito aos medicamentos.
Houve acesso à informação ampla e qualificada para a prevenção, ao atendimento, a medicamentos que poderiam salvar vidas, vistos como um bem público e não como uma mercadoria
A epidemia em questão – é fácil identificar – não é a Covid-19, embora também tenha provocado assombro mundial. Causada pelo vírus HIV, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) chegou com a década de 1980 e tornou o Brasil referência mundial no controle da doença, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Um dos aspectos mais marcantes da história da luta contra o HIV/Aids é a sua relação com os direitos humanos, a mobilização da sociedade civil em conjunto com os governos e agências multilaterais na formulação das políticas de prevenção e tratamento”, observa o historiador Marcos Cueto, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Em artigo publicado na revista Global Public Health, Cueto e Gabriel Lopes, pesquisador em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz, destacam os fatores que tornaram o Brasil modelo na história global de combate à doença, ainda incurável e sem vacina, e analisam as causas por trás do retrocesso das políticas de Aids no país, o mais afetado pela epidemia na América Latina. Os autores argumentam que a regressão foi resultado da interação de fatores globais e nacionais.
“O Brasil foi reconhecido pelos seus avanços na luta contra o HIV/Aids, uma vez que, para além do fornecimento da terapia antirretroviral pelo Sistema Único de Saúde (SUS), existiu um alinhamento favorável entre as ONGs, pacientes e sociedade civil para que houvesse não apenas o tratamento da doença, mas também combate ao estigma e foco na informação e prevenção, com a distribuição gratuita de preservativos, seringas e agulhas descartáveis. Consideramos no artigo que este período de auge vai de meados dos anos de 1990 até o fim da primeira década do século 21, aproximadamente”, acrescenta Cueto, editor-científico da revista HCS-Maguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz.
Política da Aids foi uma das maiores conquistas do SUS
A articulação citada por Cueto foi estimulada principalmente pela ideia de saúde como direito, acrescenta Lopes. Na década em que a Aids surgiu, o Brasil vivia a redemocratização, processo que trouxe várias conquistas, entre elas, a criação do SUS e a definição da saúde como direito de todos e obrigação do Estado, descrita na Constituição de 1988. A política de combate à doença, avaliam os autores, foi uma das maiores conquistas do sistema público de saúde.
O Brasil conseguiu reduzir de forma significativa a mortalidade pela Aids e o número de crianças nascidas com HIV. Adotou medidas inovadoras e inclusivas: foi o primeiro país a garantir a todos os cidadãos o acesso a antirretrovirais – medicamentos que inibem a multiplicação do vírus no organismo, evitando prejuízos ao sistema imunológico e aumentando a expectativa de vida dos soropositivos – e um dos primeiros a implementar programas de troca de seringas. “Houve acesso à informação ampla e qualificada para a prevenção, ao atendimento, a medicamentos que poderiam salvar vidas, vistos como um bem público e não como uma mercadoria”, observa Lopes.
Globalmente, a regressão nas respostas à epidemia delimitou o fim de um termo atribuído à doença desde o final dos anos 1980: excepcionalismo. Com isso, justificava-se a destinação de fundos e serviços especificamente para o combate a Aids. A depender do público, o termo ganhava uma dimensão mais ampla. “Para os ativistas da saúde, a Aids foi excepcional porque legitimou as identidades sexuais e ajudou a combater o estigma social, denunciar o preço dos medicamentos e atenuar as assimetrias globais de poder”, escrevem os pesquisadores, que investigaram o fim desse excepcionalismo no Brasil, analisando o declínio do Programa Nacional de DST/Aids.
Sai excepcionalismo, entra “sustentabilidade”
Nos discursos sobre Aids, aqui e no mundo, o termo excepcionalismo foi substituído por “sustentabilidade”. “Analisamos com mais detalhes a desarticulação das instituições, tanto agências multilaterais, como a Unaids, quanto do governo brasileiro em relação às demandas das ONGs e pacientes, especialmente em relação às políticas de informação e prevenção. Outro fator foi a crise econômica iniciada em 2008, o subfinanciamento de importantes instituições e a biomedicalização focada em uma visão estrita de 'sustentabilidade', que tende a favorecer países de alta renda a nublar a dimensão da prevenção, combate ao estigma e ênfase nos direitos humanos”, diz Cueto.
O declínio das políticas de enfrentamento ao vírus “contou com a participação de setores conservadores, que insistiram na moralização do HIV/Aids ao invés do entendimento dessa pandemia como problema de saúde pública, em que o combate ao estigma e à homofobia são elementos fundamentais para um programa bem-sucedido”, complementa Lopes.
Segundo os pesquisadores, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, de 1995 a 2011, o programa de Aids teve “continuidade e integridade”. Nas duas gestões, o Ministério da Saúde negociou com as empresas farmacêuticas para reduzir o preços dos antirretrovirais e garantir assim o acesso universal ao tratamento. Em nome disso, apostou na produção nacional de medicamentos genéricos e, em 2007, no licencimento compulsório de antirretroviral.
Já nos dois mandados da presidente Dilma Rousseff (2011-2016), apesar de determinados avanços, houve enfraquecimento do controle social em relação às ações governamentais e uma “posição tímida em relação aos medicamentos patenteados, apesar do uso abusivo de preços”, escrevem no artigo.
Com as trocas de comando do país, novos problemas surgiram. No governo de Michel Temer (2016-2019), o financiamento público do SUS foi congelado por 20 anos, causando danos ao combate à Aids. O governo atual, de Jair Bolsonaro, iniciado em janeiro de 2019, não ficou atrás, acrescentam Cueto e Lopes: demitiu funcionários importantes do programa de Aids, suspendeu contratos com laboratórios públicos para a produção de genéricos, extinguiu instâncias da Política Nacional de Participação Social, como o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBTs, e cancelou o Política de Redução de Danos ao HIV, que instituía troca gratuita de seringas para usuários de drogas injetáveis, uma das formas de transmissão do HIV.
Autoritarismo e conservadorismo
“A regressão das políticas de Aids no Brasil resultou de desdobramentos políticos nacionais e globais e representa o fim do excepcionalismo atribuído à doença”, concluem os autores de Backlash in global health and the end of Aids’ exceptionalism in Brazil, in 2007-2009. Em nível interno, citam, além da fragmentação da esquerda; “a erosão da aliança entre funcionários do governo, trabalhadores da saúde pública, diplomatas e ativistas da saúde, que sustentavam políticas anti-Aids progressistas; o surgimento de governos autoritários e neoliberais; e a proeminência alcançada por evangélicos conservadores e católicos”.
A julgar pelos dados epidemiológicos, estamos longe do "fim da Aids", mote da campanha internacional que estima a data para zerar os casos da doença globalmente em 2030. Segundo o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), existiam 37,6 milhões de pessoas vivendo com HIV no mundo em 2020, quando foram registradas 690 mil mortes relacionadas à Aids. Desde o início da epidemia até o fim do ano passado, 77,5 milhões de pessoas foram infectadas pelo vírus e 34,7 milhões morreram.
Após quatro décadas, a universalização do acesso à terapia antirretroviral segue inalcançável para milhões de pessoas, já que atinge 73% dos soropositivos. A mortalidade e o total de novas infecções reduziram-se significativamente, mas toda semana, cerca de 5 mil mulheres entre 15 e 24 anos são infectadas pelo HIV.
No Brasil, que busca combinar testes rápidos e tratamentos pós e pré-exposição ao vírus, entre outras medidas, os dados mais recentes apontam que, em 2019, foram diagnosticados 41.909 casos de HIV e 37.308 de Aids, de acordo com o Boletim Epidemiológico HIV/Aids, publicado em dezembro de 2020 pelo Ministério da Saúde. Com isso, de 1980 até junho do ano passado, houve registro de mais de 1 milhão de casos da doença no país. Também em 2019, foram contabilizados 10.565 óbitos no país, número que salta para 349.784 se considerarmos os registros desde a descoberta da doença. São números preocupantes, que não se deve tolerar.