Em estudo sobre a construção da narrativa científica em Santos e no Rio, historiadora detalha controvérsias no enfrentamento às doenças
Por Karine Rodrigues
Quando a notícia sobre a existência de peste bubônica em Portugal chegou aos ouvidos do Brasil, em agosto de 1899, uma certa incredulidade se instaurou no país, onde os portos de Santos, no litoral paulista, e do Rio de Janeiro, fervilhavam de imigrantes e mercadorias, especialmente o café produzido pela elite empresarial. Péssimas condições sanitárias nas regiões portuárias – habitadas nas cercanias por uma população mais vulnerável – associadas a informações desencontradas dadas por profissionais da área da saúde e autoridades, tornavam o cenário ainda mais propício para que a doença logo se espraiasse por aqui. E assim foi.
Quando se estuda a história das epidemias, vemos de forma muito clara que a doença é um fato biológico, mas que se torna um fato social, pelas implicações que a epidemia tem, e aí revela que Estado é esse, que sociedade é essa que a gente vive
Ao se revisitar a historiografia sobre doenças no Brasil, a pandemia de Covid-19, embora inédita, desperta uma sensação de déjà-vu. Situações ocorridas no passado parecem se repetir em episódios recém-vivenciados em relação à política de enfrentamento ao vírus Sars-CoV-2. Se o assunto é a necessidade de quarentena, por exemplo, tanto lá, na virada para o 1900, quanto cá, mais de um século depois, a grita de determinados setores da sociedade contra as medidas sanitárias se faz presente.
“Os grandes empresários ligados diretamente às atividades importadora e exportadora e, portanto, altamente interessados no pleno funcionamento portuário se negam no primeiro momento a admitir a existência de qualquer evento patológico que pudesse implicar a suspensão, ainda que temporária, de suas altamente lucrativas atividades comerciais”, escreve Dilene Raimundo do Nascimento, professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em artigo que analisa aspectos do processo de construção da narrativa científica sobre a peste bubônica nas cidades portuárias de Santos e Rio de Janeiro.
A peste “chegou” ao Brasil, via telégrafo, em 14 de agosto de 1899, quando o responsável pela Diretoria Geral de Saúde Pública, o médico Nuno de Andrade (1851-1922), recebeu a notificação oficial de que a cidade do Porto estava infestada pela doença. Dado o trânsito marítimo permanente entre os dois países, o sinal de alerta foi imediatamente ligado. Ele propôs, então, uma quarentena de 20 dias aos navios vindos de portos portugueses, que depois seriam submetidos a desinfecções, relata Nascimento em A peste aporta em Santos e Rio de Janeiro publicado na revista História: debates e tendências.
Duelos verbais nas páginas de jornal
Responsável por assuntos de saúde pública, o então ministro de Justiça e Negócios Interiores, Epitácio Pessoa (1865-1942), assinou embaixo da decisão de Nuno de Andrade. Mas a questão estava longe de ser consensual. Logo, as páginas do Jornal do Commercio viraram palco de um caloroso debate público sobre as medidas sanitárias adotadas pelo governo federal para evitar a chegada da peste bubônica ao Brasil. E assim como tantas vezes já se testemunhou desde o início da pandemia de Covid-19 no país, a contestação partiu de autoridades.
Carregamento de café no porto de Santos em 1880. Foto: Marc Ferrez.
Ao fazer um paralelo entre o enfrentamento à peste e à Covid-19 no Brasil, a pesquisadora destaca que a polarização entre medidas sanitárias e economia “se repete em toda a epidemia”. Se na virada para o século 20 o que mais importava era manter o escoamento do café no porto de Santos, por exemplo, o que se viu recentemente foram manifestações pedindo o fim do isolamento social, em nome, supostamente, do bem da classe trabalhadora.
“Vimos empresários dentro de seus respectivos carros fazendo carreatas para que os trabalhadores pudessem trabalhar. No caso, para que pudessem trabalhar para eles, empresários. Então, a situação não é simples assim, não é uma defesa direta do trabalhador. Na verdade, é uma defesa do empresariado”, avalia, ressaltando o embate entre a economia e a saúde, que também ocorreu quando da chegada da peste na cidade do Porto, em Portugal.
Esgotados os argumentos científicos, a discussão vira disputa pessoal
Em artigo anterior sobre o tema, escrito com Matheus Alves Duarte da Silva e publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Nascimento detalha o duelo verbal travado entre agosto e setembro daquele ano, por Nuno de Andrade e o também médico Jorge Alberto Leite Pinto (1865-1934), diretor de Higiene e Assistência Pública do Estado do Rio de Janeiro, que criticava a política de combate à peste, considerando 20 dias um tempo muito longo para a quarentena. Segundo frisava, a peste era “facilmente dominável”. Considerando o cenário atual, quase “uma gripezinha”.
Se, em princípio, Oswaldo Cruz recorreu à vacinação da população portuária contra a doença, o médico não deixou de lado práticas sanitaristas clássicas
“Inopinadamente e escandalosamente, uma ‘autoridade sanitária estadual’ salta de dentro do seu silêncio e vem esbravejar, na imprensa, que as providências são draconianas, restauradoras dos ferozes excessos de outrora, que o regulamento em vigor é um monstrengo ridículo; que o comércio está sendo lesado sem necessidade; que a peste é a mais dominável de todas as moléstias e cita em francês as banalidades de [Henri] Monod, alude à crítica de palanque de [Paul] Brouardel, infla as bochechas de Conferência de Veneza, detrai, amesquinha e ofende”, escreveu Nuno de Andrade em resposta a Jorge Pinto.
Quando os argumentos técnicos se esgotam, as discussões sobre as medidas sanitárias escorregam para o lado pessoal, frisa Nascimento, a respeito do que se viu no século passado e, também, atualmente: “Acompanhamos isso agora. Vimos ad nauseam nas redes sociais comentários como ‘aquele almofadinha de calça justa e não sei o quê de São Paulo quer fazer isso e aquilo’.”
Quando a informação dos médicos desorienta
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Charge retrata Oswaldo Cruz. Imagem: Acervo Fiocruz. |
Enquanto a disputa esquentava nas páginas do jornal, começaram a surgir casos de pessoas com enfermidades que evoluíam muito rapidamente para óbito, tratadas, supostamente, como febre amarela. Além disso, a presença de ratos mortos na região portuária, embora comum, parecia fora do controle. Em Santos, Adolpho Lutz (1955-1940) e Vital Brazil (1865-1950), então do Instituto Bacteriológico de São Paulo, foram chamados a investigar os casos e acabaram concluindo se tratar de peste bubônica. Notificado do surto em 17 de outubro, a Comissão Sanitária local deu início à inspeção de prédios e moradores das zonas afetadas.
O povo, “desorientado com os conselhos de alguns médicos e, de muitos entendidos, não acreditavam na peste”, escreve Nascimento, citando mais um paralelo sobre a situação atual, quando profissionais da área defenderam o uso de medicamentos sem qualquer eficácia científica contra o vírus da Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina.
“O Conselho Federal de Medicina não só não tomou medidas em relação aos médicos que defenderam a cloroquina como passou a defendê-la. ‘Ah, mas se defendeu, deve estar certo. Não, não está certo, não!’ É preciso pesquisar as relações da instituição. Não dá para acatar como idôneo qualquer narrativa sem conhecer o seu porta-voz, entender as relações desse porta-voz, seja individual ou institucional. Só assim você pode dizer ‘não, tudo bem, é idôneo, mas eu não concordo com essa posição’. Mas se ele transita em um meio de corrupção, não dá para dar credibilidade a essa fala. Então, é difícil mesmo saber qual a narrativa devemos considerar”, pontua Nascimento, que é graduada em Medicina.
Na capital federal, uma reforma arrasadora
Depois de aportar em Santos, a peste não tardou a chegar na então capital federal. Assim como na cidade do Porto, o Rio se mostrava “totalmente carente das mínimas condições sanitárias para a sua população pobre e trabalhadora”, escreve a pesquisadora. À época dedicado às pesquisas no Instituto Soroterápico Federal, no Rio – instituição que deu origem à Fiocruz, criada para produzir soro e vacina contra peste bubônica –, Oswaldo Cruz foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública, com a missão de debelar a epidemia.
“Se, em princípio, Oswaldo Cruz recorreu à vacinação da população portuária contra a doença, o médico não deixou de lado práticas sanitaristas clássicas como a notificação obrigatória, o isolamento de doentes, a remoção de entulhos e reformas das habitações, além de outras medidas, como a caça aos ratos e a limpeza das vias públicas”, enumera Nascimento.
Os roedores entraram na mira de Oswaldo Cruz porque a bactéria causadora da peste bubônica é transmitida por pulgas, encontradas em roedores. Em artigo escrito com Silva, publicado na Revista de História, da Biblioteca Nacional, a pesquisadora conta em detalhes a iniciativa do cientista, que criou a figura do caçador-comprador de ratos e retirou de circulação mais de 1,6 milhão deles, entre 1903 e 1907, reduzindo, assim, os casos de peste bubônica no Rio.
No Instituto Soroterápico Federal, Rocha Lima e Ezequiel Dias inoculam cavalo. Foto: Acervo Fiocruz.
O presidente Rodrigues Alves (1848-1919) decidiu, então, virar o Rio de cabeça para baixo, implementando um projeto de modernização e higienização que visava atender interesses econômicos da burguesia local e tornar a capital da República um lugar civilizado. “Uma arrasadora reforma urbana e saneamento, que, embelezando a região central da cidade, interiorizou as camadas pobres da população, o que acabou por resultar naturalmente na destruição dos focos propícios ao surgimento e propagação da peste bubônica”, escreve a pesquisadora.
Medidas sanitárias em segundo plano
Na disputa de narrativas em relação às medidas necessárias para o enfrentamento de uma epidemia, além da economia e da saúde, outro elemento se faz presente, observa Nascimento: a política. Segundo ela, isso faz com que, em nome da manutenção de um cargo, decisões sobre a pandemia, que deveriam considerar questões sanitárias e científicas, são tomadas para evitar desagradar eleitores. Daí o “desastre patente” na política de combate à Covid-19, avalia.
“Quando se estuda a história das epidemias, vemos de forma muito clara que a doença é um fato biológico, mas que se torna um fato social, pelas implicações que a epidemia tem, e aí revela que Estado é esse, que sociedade é essa que a gente vive”, considera a pesquisadora. Quando, então, o Brasil vai aprender com os erros das epidemias do passado? “Quando existir outra estrutura social, política e econômica no país”, resume, sobre o desafio que há mais de um século segue em aberto.