Érico Silva Muniz*
Todos os anos, com o início do mês de julho, as mesmas cenas se repetem na chegada do verão amazônico. Recesso escolar alongado e trabalhadores gozando as suas férias marcam a estação do ano em que as temperaturas são mais altas e os menores índices pluviométricos são registrados. Nas ruas e avenidas da região metropolitana de Belém, a tranquilidade do trânsito sinaliza que parte da população deixou a cidade para aproveitar o recesso nos balneários, igarapés e praias fluviais e marítimas do estado do Pará.
O nordeste paraense, a Amazônia Atlântica, é um dos destinos dos ávidos banhistas. No município de Salinópolis, localizado a aproximadamente 220 quilômetros da capital, as belas praias de areia fina e água salgada atraem sempre banhistas que esperaram essa época do ano para aproveitar o sol. Junto ao mar, toda uma infraestrutura é tradicionalmente montada com festivais de música com artistas de renome nacional, rede hoteleira e restaurantes reforçados para o atendimento. Muitas vezes, a praia do Atalaia ganha as manchetes dos jornais e sites de notícias pelos engarrafamentos na areia, lixo e poluição sonora gerados pela presença humana na região.
O que essa pandemia vem demonstrando é que a defesa da ciência nem sempre é encampada por governantes e representantes do poder público para tomar medidas responsáveis.
Além desse uso da praia, considerado por muitos como ambientalmente incorreto, as notícias registram quase sempre “naufrágios” de carros. Como a praia fica tomada de pick-ups, automóveis de tração 4×4 e carros de passeio, algumas vezes, quando a maré começa a subir, não há tempo para que todos os veículos deixem as areias antes da fúria do oceano Atlântico. A recorrência dos carros tragados pelas águas acaba por revelar um hábito bastante idiossincrático, previsível e preenchido de significados múltiplos; uma espécie de gerência simbólica entre o lazer e o perigo, em nome da manutenção do privilégio de classe e de exclusividade da praia.
Em 2020, além da polêmica habitual que esse uso da praia costuma gerar, uma nova questão chamou a atenção da opinião pública: como justificar as costumeiras cenas de praia lotada considerando que vivemos a pandemia de coronavírus? O que embasaria os decretos municipais e estaduais que regulam as posturas nas férias e a diversão nas águas? Ou seja, como evitar aglomerações de veranistas?
De acordo com o decreto municipal n. 028, de 27 de junho de 2020, que organiza a série de medidas para a “retomada econômica e social segura” em Salinópolis, ficam proibidos, neste verão, som automotivo e a realização de shows com apresentação de djs, bandas e trios elétricos nas praias e nas praças do município, mas fica permitida a entrada de veículos e pessoas nas principais praias “respeitadas as regras de distanciamento social”.
Segundo o decreto, “não será permitida aglomeração de pessoas nas praias localizadas no município, com exceção de grupo familiar com, no máximo, 10 (dez) pessoas”, tendo os estabelecimentos também a obrigatoriedade de garantir meios de proteção individual dos funcionários e clientes e a higienização dos espaços, estando sujeitos a multas e sanções. O decreto municipal foi amplamente divulgado pelos principais noticiários locais da região e do estado e também pelas redes sociais vinculadas à Prefeitura Municipal de Salinópolis. Contudo, os fins de semana do mês de julho guardaram muitas semelhanças com os dos anos anteriores; o que foi visto nas praias do município era a grande quantidade de carros e de pessoas desrespeitando as medidas de proteção, como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social, ambos estabelecidos pelos órgãos de saúde e pelo decreto municipal.
Cabe destacar que essas regulações contrariam algumas das orientações de parte da comunidade de médicos e cientistas, que seguem defendendo o isolamento social como uma das principais maneiras de controle do coronavírus, devendo o processo de retomada priorizar as atividades essenciais. Todavia, sabemos também que a ciência não paira sobre um mundo sem interesses e disputas, tais como influências e pressões religiosas, culturais e econômicas das mais diversas ordens. Bruno Latour (2000) nos mostra que, na História, as apropriações da ciência são contextuais. Tanto os fatores científicos quanto os não-científicos são importantes nos processos de tomada de decisão. Ou seja, as descobertas científicas são atravessadas pelas disputas ideológicas e de poder e, no caso da COVID-19, isso parece ficar bastante evidente no que se refere às medidas de flexibilização de quarentena e retomada de atividades.
Como justificar as costumeiras cenas de praia lotada considerando que vivemos a pandemia de coronavírus? O que embasaria os decretos municipais e estaduais que regulam as posturas nas férias e a diversão nas águas? Ou seja, como evitar aglomerações de veranistas?
Uma rápida busca por documentos e decretos municipais e estaduais sinaliza que, no retorno gradativo à normalidade em tempos de COVID-19, apenas alguns grupos sociais tiveram direito ao uso de espaços públicos como as praias. No caso do veraneio no nordeste paraense, está autorizado o funcionamento de hotéis e restaurantes, mas estão proibidos piqueniques, acampamentos e excursões. Pequenos vendedores e ambulantes enfrentaram longos debates com os poderes públicos para terem autorização para seu trabalho. Está permitido lotar táxis, automóveis particulares com familiares e amigos, mas fica proibido acessar a praia com ônibus fretados ou de linhas regulares. Nos acessos aos principais destinos turísticos da região, são montadas barreiras sanitárias nas quais o recado é objetivo: carro passa, ônibus fica.
Sob o viés da diferenciação de classe social durante a pandemia, cabe lembrar o início das medidas de lockdown em Belém, no mês de maio, quando o trabalho de empregadas domésticas foi declarado, pelo prefeito Zenaldo Coutinho, como atividade essencial, contrariando o entendimento nacional sobre o assunto[1]. Nesse ponto, uma inevitável alusão às heranças coloniais veio à baila: herdeiros da Casa Grande não podiam dispensar as atividades de trabalhadores domésticos. Após repercussão negativa, o decreto foi reeditado.
A História não cumpre exatamente a função de fornecer lições, mas ela é capaz de expor as contradições que muitas vezes são estruturantes da nossa sociedade. No livro “Cidade Febril”, Sidney Chalhoub (1996) demonstrou que, no fim do século XIX, no Rio de Janeiro, as Comissões de Posturas defendiam que “vadios” e “pessoas suspeitas” representavam risco elevado ao controle de epidemias na Corte Imperial. Ou seja, além das condições de higiene e dos problemas de habitação vividos à época, um tom moralizante recaía sobre as ditas “classes perigosas”.
Está permitido lotar táxis, automóveis particulares com familiares e amigos, mas fica proibido acessar a praia com ônibus fretados ou de linhas regulares. Nos acessos aos principais destinos turísticos da região, são montadas barreiras sanitárias nas quais o recado é objetivo: carro passa, ônibus fica.
Em Belém, no período que ficou conhecido como Belle Époque, a gestão do Intendente Antônio Lemos (1897-1911) também lançou mão de medidas repressoras. A instauração de um Código de Polícia Municipal passou a regular posturas higienistas, com mão de ferro, para sanear a cidade que almejava tornar-se a “Paris N’América”. Ou seja, o cotidiano de moradores pobres da cidade passava a sofrer intervenções que não continham somente a finalidade de manutenção da higiene; as políticas adquiriam também o tom moralizante e disciplinatório na era da exploração da borracha (Lacerda & Sarges, 2009).
O caso das praias amazônicas do século 21 demonstra que, apesar do hábito de tomar banhos de mar ser muito apreciado em nossa sociedade, a praia não se constitui exatamente como um território democrático. Tomando as praias como espaços abertos de sociabilidade, e, de certa forma, como um emblema nacional, a antropóloga Fernanda Huguenin (2019) desconstrói o mito da praia como local de encontro da brasilidade ou de um espaço capaz de dissolver as distinções sociais. No Brasil é possível registrar diversas praias “exclusivas”, de acesso restrito ou dificultado às massas; o que também se aplica ao consumo diferenciado e ao perfil dos frequentadores de cada território. O estilo de vida de contemplar a praia não suspende, portanto, as contradições brasileiras.
Aspectos dessa moral, que confere uma espécie de “aglomeração consentida” apenas às famílias de classe média e da elite, são expressos em detalhes da regulação criada para algumas cidades que atraem veranistas. Através da Operação Verão 2020 e de ações conjuntas entre o governo estadual e de municípios do nordeste paraense, destacam-se os perigos do consumo de bebida alcoólica. Alusão ao combate às vadiagens e aos excessos do início do século 20 não terá sido mera coincidência. O historiador inglês E. P. Thompson (1998) já sinalizava como a moralização do lazer da classe operária pode ser alvo voraz do campo do direito. Reprimir o consumo de álcool e a embriaguez, costumes que tanto incomodavam os donos das fábricas inglesas na época da Revolução Industrial, ressurge como alvo das interdições em algumas localidades que estão tentando regular os riscos de transmissão da Covid-19.
O lazer, mais uma vez, não é praticado de forma democrática e responsável no verão amazônico. Nem mesmo uma grave crise sanitária, e de escala global, alterou o privilégio de classe exercido no momento de ir à praia.
Ainda não se sabe, com exatidão, se uma segunda onda de casos pode chegar à Amazônia em virtude do aumento da circulação de pessoas, especialmente de jovens adultos, com a flexibilização do isolamento social, ou se uma vacina de fato está em vias de ser confirmada. O que essa pandemia vem demonstrando é que a defesa da ciência nem sempre é encampada por governantes e representantes do poder público para tomar medidas responsáveis. Como temos acompanhado, pressões econômicas e de grupos políticos os mais diversos ganham diferentes tonalidades em cada parte do país. Enfim, apesar das muitas incertezas sobre o futuro da pandemia do coronavírus, é possível afirmar que, em julho de 2020, o lazer, mais uma vez, não é praticado de forma democrática e responsável no verão amazônico. Nem mesmo uma grave crise sanitária, e de escala global, alterou o privilégio de classe exercido no momento de ir à praia.
* Érico Silva Muniz, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz, professor adjunto da Faculdade de História do Campus Universitário de Bragança e professor do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA)
Referências bibliográficas
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
HUGUENIN, Fernanda Pacheco da Silva. O mito da praia democrática: um ensaio sobre Ipanema, sua bossa e seus banhistas. Campos dos Goytacazes, RJ: Essentia, 2019.
LACERDA, Franciane Gama; SARGES, Maria de Nazaré. De Herodes para Pilatos: violência e poder na Belém da virada do século XIX para o XX. In: Projeto História, PUCSP, v. 38, p. 161–178, 2009.
LATOUR, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora São Paulo, UNESP, 2000.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
[1] Belém vai contra entendimento nacional e inclui domésticas como essenciais. Portal Uol. https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/05/06/belem-inclui-domesticas-entre-servicos-essenciais-durante-lockdown.htm. Último acesso em 31/07/2020;