Daniela Murta (Unesa)*
Incorporada a partir da Reforma Sanitária e definida como princípio doutrinário do Sistema Único de Saúde (SUS), a noção de equidade é uma referência fundamental para a garantia do direito à saúde no Brasil. A partir da ideia de que são múltiplos os fatores que interferem no processo saúde e doença e que, portanto, há uma diversidade de necessidades entre os diferentes segmentos da população e de que o acesso ao cuidado integral depende de estratégias específicas, o Ministério da Saúde vem se dedicando a formular políticas com o objetivo de promover a equidade em saúde.
Ao analisar os vários recortes que orientam a construção das políticas de promoção da equidade, é possível identificar o gênero como um marcador que se destaca. Compreendido como um determinante social da saúde que enfeixa e atravessa diversos outros e, muitas vezes produz vulnerabilidade, o gênero e toda a complexidade que envolve este conceito, principalmente por sua articulação com a sexualidade e os papéis sociais, aparece como eixo de referência ou intersecção de diversas políticas de saúde.
A primeira estratégia de saúde atrelada ao gênero no Brasil foi o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism), publicada em 1984 a partir da incorporação de propostas feministas de rompimento com o paradigma da atenção à saúde da mulher centrada na sua reprodução. Nesse documento, foi proposta uma ampliação do cuidado para além da saúde materno-infantil com a previsão do atendimento integral de outras necessidades em todos os ciclos de vida, com destaque ao olhar para sexualidade deslocado da maternidade e com foco no fortalecimento da autonomia das mulheres. Ainda que anterior ao SUS e, consequentemente, à formalização do enfrentamento de iniquidades em saúde no Ministério da Saúde, esse programa se colocou como uma política pública emancipatória e de transformação de relações desiguais entre os gêneros.
Por apresentar algumas lacunas relativas à saúde reprodutiva e não contemplar outros marcadores sociais relevantes, como raça e etnia, em 2004 o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres (PNAISM). Incorporando contribuições oriundas da participação social. essa política propôs o desenvolvimento de ações integrais e intersetoriais a fim de atender não apenas a diversidade da condição feminina, mas também possibilitar o enfrentamento das consequências da desigualdade de gênero sobre a saúde. Nesse sentido, num enfoque de gênero, traz a integralidade e a promoção da saúde como princípios norteadores, buscando consolidar avanços no campo dos direitos sexuais e reprodutivos (Brasil, 2004).
No contexto dessa incorporação do gênero como um determinante social da saúde, em 2009 o Ministério da Saúde criou a Política Nacional de Atenção Integral de Saúde do Homem (PNAISH) a fim de evidenciar as necessidades específicas dos homens e romper com o risco decorrente da associação entre fragilidade e autocuidado. Pautada em dados socioculturais e reconhecendo a pluralidade do masculino, essa política tem como propósito colocar em pauta suas vulnerabilidades e reposicioná-los como objeto de cuidado. Nesse panorama, propõe a discussão sobre “masculinidades” no contexto da saúde para produzir mudanças na reorganização de práticas e sentidos acerca do que é ser homem, nas relações de equidade de gênero e nas suas implicações no processo de saúde-doença (Brasil, 2009).
Embora ambas as políticas constituam importantes avanços no reconhecimento das vulnerabilidades e especificidades que estão associadas ao gênero, bem como na produção de um cuidado efetivamente integral, é importante atentar ao fato de que ambas se orientam por um modelo binário dos sexos e sustentam, apesar de algumas referências sobre a diversidade sexual e de gênero, uma referência cisheteronormativa. A ruptura com estereótipos de gênero e a consideração de práticas e orientações sexuais diversas não contemplam as necessidades específicas de pessoas LGBTQIAP+, tornando necessária a construção de uma política específica para o enfrentamento das iniquidades em saúde desta população.
Diante dessa constatação e de discussões formuladas em conjunto com o movimento social organizado, em 2011 o Ministério da Saúde publicou a Política Nacional de Saúde Integral da População LGBT (PNSIPLGBT). Considerando que a inadequação à normatividade sexual e de gênero deste segmento determina seu processo saúde e doença e que isso está intimamente associado à discriminação e ao preconceito, foram formulados princípios e diretrizes para promover a equidade do acesso à saúde e seu cuidado integral (Brasil, 2013).
A despeito da inquestionável relevância dessa política é importante ressaltar que o enfrentamento da iniquidade em saúde decorrente da orientação sexual e da identidade de gênero da população LGBTQIAP+ ainda impõe desafios. Para além da LGBTIfobia estrutural que produz barreira de acesso e vulnerabilidade, é necessário problematizar a lógica cisheteronormativa e binária que orienta o SUS excluindo das possibilidades de cuidado corpos e identidades que estão fora dessa norma. Ainda que haja a previsão de acolhimento a diversidade sexual e de gênero, o sistema de saúde brasileiro reitera a ideia de uma diferença ontológica entre os sexos e naturaliza a heterossexualidade, falhando em seu propósito de garantir cuidado universal, integral e equitativo.
Diante do exposto, podemos concluir que nos últimos 30 anos a promoção da equidade em saúde a partir do recorte de gênero tem sido uma preocupação significativa do Ministério da Saúde. A formulação de políticas específicas e a elaboração de estratégias intersetoriais denota a clara intenção de garantir o direito à saúde, reconhecendo os efeitos dos marcadores sociais sobre o processo saúde e doença. Todavia, muitas dessas políticas precisam ser revisadas e aprimoradas para que, além de uma formalização burocrática, permitam de fato o cuidado integral para todos.
*Daniela Murta é professora do Instituto de Educação Médica (Idomed) da Universidade Estácio de Sá (Unesa) e assessora técnica da Coordenadoria de Diversidade Sexual (CVL) e Superintendência de Promoção da Saude (SMS) da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Referências:
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: Ministério da Saúde, 2013.