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‘Estamos distantes da prática da medicina baseada em evidências no Brasil’, afirma pesquisadora

07 abr/2021

Na forma como é oferecida, formação na área pode contribuir para a tomada de decisões sem comprovação científica, diz autora de artigo em HCSM

Imagem: Silmara Mansur/iStock

Ilustração mostra médico com uma máscara respiratória sobre os olhos. Ao fundo, inúmeras cruzes.

Por Karine Rodrigues

Se existiam dúvidas sobre o espaço que a medicina baseada em evidências (MBE) ocupa no Brasil, a pandemia de Covid-19 deu um norte. No país em que tratamento precoce e drogas como a ivermectina ainda persistem em prescrições médicas, apesar de comprovadamente ineficazes contra o vírus Sars-Cov-2, vê-se que ainda há um longo caminho a percorrer até o lastro científico virar rotina na atenção à saúde.

“No Brasil, estamos distantes da prática da medicina baseada em evidências”, avalia a historiadora e doutora em saúde coletiva Lina Faria, sobre o paradigma assistencial e pedagógico que integra, no processo de tomada de decisão, a experiência clínica, as especificidades do paciente e as evidências disponíveis no momento, encontradas nas pesquisas científicas.

Esse tipo de conduta, de prescrever um remédio ou procedimento clínico sem evidências científicas, tem relação direta com a formação que a maioria dos cursos de medicina, tanto no Brasil quanto em outros países, oferecem aos estudantes

Em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde, Manguinhos (v.28, n.1, jan./mar. 2021), editada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e disponível na íntegra no portal SciELO, Lina contextualiza historicamente a MBE e destaca a sua importância no ensino e nas práticas clínicas.

Escrito antes do início da pandemia, em parceria com o médico e doutor em Educação José Antônio de Oliveira-Lima, professor convidado da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), e o epidemiologista Naomar de Almeida Filho, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor visitante do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP), o artigo destaca que a aplicação da MBE abarca apenas um percentual restrito das evidências que precisam ser demonstradas. Além disso, quando elas existem, “muitas vezes os médicos tomam a decisão contrária”, diz Lina, citando como exemplo a falácia do tratamento precoce para Covid-19.

“Estudos científicos já demonstraram que não há comprovação para a eficácia do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em casos da doença. Não há garantias de resultados positivos. Pelo contrário. Esses estudos demonstram a falta de segurança na rotina clínica, com efeitos colaterais frequentes e, em alguns casos, potencialmente fatais. Para muitos médicos, contudo, prescrever um remédio sem evidências científicas ou propor um procedimento clínico indica que ele está proporcionando um 'benefício' ao paciente", observa a professora associada da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

A prescrição de medicamentos sem evidências científicas no país está diretamente relacionada à formação oferecida nos cursos de Medicina, acrescenta a pesquisadora. O enfrentamento à problemática de procedimentos médicos que trazem mais prejuízos à saúde do que benefício foi discutido em artigo recente sobre prevenção quaternária, reforma curricular e educação médica. Segundo ela, estudos apontam que o elevado número de procedimentos, exames e intervenções desnecessárias pode estar relacionado às dificuldades que o profissional da área encontra para identificar as fontes de informação, analisar criticamente as evidências e desenvolver pesquisas.

Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.

Qual a definição de medicina baseada em evidências e como ela evoluiu para outras áreas da saúde?


    
    Lina Faria. Foto: Arquivo pessoal.

Medicina baseada em evidências (MBE) significa buscar a melhor evidência clínica disponível proveniente de investigação sistemática. Esse movimento, iniciado nos anos de 1980, representou uma mudança radical de um paradigma de conhecimento, que foi baseado na experiência clínica sobre o cuidado de pacientes.

A prática baseada em evidência (PBE), por sua vez, teve início um pouco mais tarde, em meados da década de 1990, e compreende os mesmos conceitos e princípios da MBE, sendo empregada por diferentes profissionais e em diversos contextos de saúde. O termo “prática baseada em evidência” amplia a aplicação da epidemiologia e a avaliação criteriosa na tomada de decisão. A PBE é, portanto, uma abordagem que incentiva as várias áreas a buscarem conhecimentos científicos por meio do desenvolvimento de pesquisas e aplicação dos resultados encontrados na prática profissional.

Uma das características essenciais da PBE é que a preferência do paciente é considerada quando o usuário chega ao serviço com algum tipo de informação sobre o seu estado de saúde. A comunicação entre o profissional e o paciente é a base do cuidado terapêutico.

A medicina baseada em evidências, diz o artigo, tem contribuído para ampliar a discussão sobre as relações entre ensino e prática da medicina, influenciando os modelos de formação e as práticas de cuidado em saúde. Em que contexto surgiu esse novo paradigma assistencial e pedagógico?

Do ponto de vista histórico, as raízes da medicina baseada em evidências se encontram no movimento de consolidação dos sistemas de saúde da Inglaterra, com a implantação do Sistema Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês), tendo como patrono o médico escocês Archibald Cochrane (1909-1988), pioneiro da epidemiologia clínica, da microeconomia da saúde e da “medicina centrada na pessoa”. Tal como a conhecemos hoje, a medicina baseada em evidências se estrutura no Canadá, nas décadas de 1980-1990, com a finalidade de promover a melhoria da assistência à saúde e uma profunda reforma no ensino médico no contexto do famoso Relatório Lalonde, e tem como figura emblemática o epidemiologista e clínico norte-americano David Sackett (1934-2015). A partir dos anos 1990, a MBE logo alcançou abrangência mundial, em especial com a Rede Internacional de Epidemiologia Clínica (INCLEN), apoiada por investimentos consistentes e massivos da Fundação Rockefeller, e com a Cochrane Collaboration, movimento internacional fundado por Iain Chalmers em 1993 para compartilhamento de informação clínica validada cientificamente.

No artigo, você pontua que, décadas após a expressão “baseado em evidências” ter sido utilizada pela primeira vez em texto, sua aplicação abarca apenas um percentual restrito das evidências que precisam ser demonstradas. Quão longe estamos ainda da prática da medicina baseada em evidências (MBE) no Brasil?

Estamos distantes da prática da medicina baseada em evidências. Especialmente se avaliarmos as grades dos cursos de medicina no Brasil. Esse tipo de conduta, de prescrever um remédio ou procedimento clínico sem evidências científicas, tem relação direta com a formação que a maioria dos cursos de medicina, tanto no Brasil quanto em outros países, oferecem aos estudantes.

As evidências deveriam reduzir o número de procedimentos, exames e intervenções desnecessárias, porém, isso não tem sido observado de forma consistente. Em artigo sobre o legado do fisiologista e filósofo francês Georges Cabanis e as raízes da educação médica no Brasil, Naomar de Almeida-Filho observa que o modelo de educação ainda hoje hegemônico no país se baseia na reforma cabasiana, mantendo uma perspectiva conceitual linear e cartesiana, com matriz curricular disciplinar, formatos tradicionais de prática pedagógica e submissão à lógica profissional corporativa.

Nos últimos anos alguns estudos têm enfatizado que o elevado número de procedimentos, exames e intervenções desnecessárias pode estar relacionado com as dificuldades dos profissionais de saúde em identificarem as fontes de informação, formularem uma questão de pesquisa, analisarem criticamente as evidências e, também, pela própria dificuldade em desenvolverem pesquisas.

Vocês destacam no artigo que o processo de decisão clínica “implica análise criteriosa e, no limite do possível, imparcial dos resultados de pesquisas científicas". O que dizer sobre o contexto atual, de pandemia de Covid-19? Inúmeros médicos apoiaram o tratamento precoce e uso de medicamentos que não se sustentam como opção quando avaliados em estudos clínicos realizados com os métodos mais confiáveis.

Por que médicos rejeitam as evidências científicas? Esta é uma discussão antiga em vários países. Muitos artigos científicos, nacionais e estrangeiros, nos últimos anos vêm publicando situações em que o profissional de saúde, em especial o médico, precisa tomar decisões clínicas na ausência de estudos que mostrem qual o melhor caminho e a melhor evidência. Contudo, na presença de evidências, muitas vezes os médicos tomam a decisão contrária, como estamos presenciando no caso do tratamento precoce para Covid-19.

Estudos científicos já demonstraram que não há comprovação para a eficácia do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina em casos da doença. Não há garantias de resultados positivos. Pelo contrário. Esses estudos demonstram a falta de segurança na rotina clínica, com efeitos colaterais frequentes e, em alguns casos, potencialmente fatais. Para muitos médicos, contudo, prescrever um remédio sem evidências científicas ou propor um procedimento clínico indica que ele está proporcionando um “benefício” ao paciente.

É imperativo que ocorram mudanças nas práticas médicas. O momento atual é de dúvidas e de incertezas. Vivemos tempos terríveis na história da saúde pública brasileira. Importante aprender, com esses momentos de pandemia e catástrofe sanitária, a buscar caminhos para a reorganização do trabalho em saúde, tanto na Atenção Primária à Saúde (APS) quanto nas universidades. Uma formação contextualizada, dialógica, reflexiva, crítica, socialmente referenciada, inclusiva, acolhedora, solidária e transformadora, como diria Paulo Freire, envolve complexidade, integralidade, humanização, comunicação, ressignificação, novas abordagens educacionais e valorização de diferentes saberes interculturais e interprofissionais.

Há quem pense que a medicina baseada em evidências é exclusivamente se ater às pesquisas científicas. O artigo, porém, frisa que a importância de se estimular a educação médica “baseada em evidências” sem fragilizar a relação entre o médico/paciente, combinando humanização e efetividade no cuidado em saúde.

É fundamental conjugar o atendimento humanizado com dados científicos, ou seja, uma formação médica baseada em evidências científicas, mas também, como afirma a cientista social e sanitarista Suely Deslandes (2004), uma formação que valorize a qualidade do cuidado do ponto de vista do reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e cultura.

O profissional de saúde, de modo geral, tem uma dupla missão de curar e prevenir doenças, mas também de cuidar, uma vez que as decisões em saúde ocorrem a partir das relações sociais que se estabelecem durante o processo terapêutico. O profissional de saúde necessita da informação científica para tomada de decisões clínicas (diagnóstico, prognóstico e tratamento), mas esses domínios precisam estar conectados ao campo das relações sociais, no qual se dá o delineamento de problemas e definição do cuidado que deve ser prestado aos pacientes e às famílias.

O conhecimento adquirido com a experiência é fundamental para diagnosticar a doença e propor procedimentos. Mas a experiência não é suficiente para tomada de decisões sobre o cuidado; a experiência requer a busca de evidências orientadoras de conduta, o que médico David Sackett (1934-2015) conceituou como o uso “consciencioso, explícito e judicioso” da melhor evidência disponível na tomada de decisão sobre o cuidado, acrescida da experiência do médico e das preferências do paciente.

As contribuições do epidemiologista Archibald Cochrane (1909-1988) e de Sackett, foram fundamentais para o desenvolvimento e difusão desse novo paradigma assistencial-pedagógico e, também, mudanças na prática médica. Ambos colocaram o paciente no centro da discussão a respeito de diagnóstico, tratamento e efeitos da aplicação tecnológica na clínica, enfatizando a importância da história de vida e dos achados clínicos na tomada de decisões na atenção e cuidado em saúde.

Vocês observam que “o enfrentamento dos problemas de saúde requer a formação de profissionais socialmente responsáveis, politicamente conscientes e aptos a se engajar num processo permanente de formação/educação". Para além das competências técnicas, são necessárias competências calcadas em valores humanitários e éticos, frisam. Estamos perto disso?

A maioria dos cursos de medicina no Brasil não oferece disciplinas, como Bioética e Ética Médica que discutam o papel do profissional de saúde na Atenção Primária à Saúde e em outros níveis de cuidado. A Ética Médica e Bioética são fundamentais na formação porque a preocupação dessas disciplinas é discutir a complexidade da relação médico-paciente-família. O ensino de bioética distingue-se do ensino de ética médica, porque esse último está centrado nos direitos e deveres do médico, enquanto o primeiro tem seu foco na multidisciplinaridade, na interdisciplinaridade e na transdisciplinaridade.

As demandas atuais de saúde requerem do profissional capacidades e competências para se adaptar às novas mudanças, do ponto de vista das tecnologias, das evidências científicas, mas sobretudo no que diz respeito às demandas sociais da população, ou seja, apresentar propostas e perspectivas em resposta à uma grande diversidade de problemas da população.

A consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) introduziu um novo desafio à formação nas profissões da saúde no Brasil, que é o de formar profissionais que trabalhem no SUS de forma coerente com seus pressupostos ético-políticos e respondam à complexidade dos problemas de saúde e, também, à complexidade da relação médico-paciente-família.

De que forma o tema da consciência social responsável e das competências interpessoais tem sido reconhecida como crucial para a formação de profissionais de saúde no Brasil?

Infelizmente nem todo(a) médico(a) é humanista ou possui consciência social. Justamente disciplinas com Ética Médica e Bioética têm a função de, juntamente com disciplinas como Educação em Saúde, Epidemiologia, Políticas Públicas de Saúde, Medicina da Família e Comunidade e Planejamento, Gestão e Avaliação dos Serviços e Programas de Saúde, Fundamentos da Saúde Coletiva e História da Medicina, proporcionarem uma boa formação nos campos ético, social e humanístico.

Não podemos esquecer que a criação do Programa Mais Médicos, em 2013, que demonstrou uma face de iniquidade no acesso à saúde e enormes vazios assistenciais –, os espaços criados pelo Programa foram preenchidos majoritariamente por profissionais formados em outros países, em particular os médicos cubanos.

Os serviços e os profissionais médicos brasileiros, naquele momento, foram desafiados a ampliar procedimentos e abordagens assistenciais que incorporassem a perspectiva da atenção e do cuidado e abordagens de promoção da saúde e prevenção de doenças e agravos. Contudo, poucos médicos brasileiros participaram desse movimento de transformação das práticas em saúde.

O processo de formação do médico, ao longo de vários séculos, pautou-se na valorização do profissional especialista, com a consequente desvalorização do médico generalista. A valorização da questão social na explicação do processo saúde-doença é extremamente recente. Apesar dos esforços em propiciar mudanças no ensino médico para adequá-lo às necessidades da população e capacitar o profissional recém-egresso da graduação a resolver ou atenuar os problemas de saúde da população, as barreiras ainda são grandes, muito por conta da resistência do estudante, nem sempre interessado nos conteúdos da Saúde Coletiva, mas, também, da resistência do corpo docente por não ter se adaptado à essa nova proposta didático-pedagógica.

Cabe, contudo, ressaltar que existem muitos profissionais comprometidos com a necessária utopia de prover serviços capazes de produzir cuidados humanizados, atentos à intersubjetividade de seus pacientes e comprometidos com a vida, especialmente os médicos e médicas que estão na ponta, envolvidos diretamente no enfrentamento da pandemia de Covid-19.

Há relutâncias para a realização de mudanças curriculares na educação médica?

Nas últimas décadas, isso é o que se verifica, mutatis mutandis, em relação às noções do cuidar e da atenção primária em diversos países: fortes resistências às mudanças na relação profissional de saúde/paciente e às mudanças curriculares na educação em saúde que fortaleça uma formação mais humanista e resolutiva.

O profissional de saúde necessita da informação científica para tomada de decisões clínicas, mas essas decisões precisam estar conectadas à realidade social do paciente, na qual se dá o delineamento de problemas e definição do cuidado a ser prestado. Importante destacar que o SUS enfrenta hoje a fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais. Enfrenta a fragmentação da rede assistencial, que dificulta a complementaridade entre a rede básica e o sistema de referência. Enfrenta também a precária interação nas equipes e despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção, além dos baixos investimentos na qualificação dos trabalhadores, especialmente no que se refere à gestão participativa e ao trabalho em equipe, desrespeito aos direitos dos usuários e modelo de atenção centrado na “relação queixa-conduta”.

Por meio da atenção primária, secundária e terciária, é possível oferecer à população, saúde de uma forma ampliada, contemplando as necessidades particulares de cada pessoa. Uma atenção que vai dos cuidados básicos aos complexos, articulando-se ao eixo da Política Nacional de Humanização (PNH). Contudo, esse novo paradigma assistencial-pedagógico precisa ser acompanhado por mudanças curriculares na educação médica.

Consideramos importante que se desenvolvam estratégias de formação que contribuam para a valorização dos profissionais de saúde no SUS, que lutam cotidianamente para que este sistema funcione, de modo que a população venha, a exemplo do que ocorre em países europeus que têm sistemas universais, a reconhecer a importância do cuidado humanizado, e somente uma formação contextualizada pode minimizar a fragmentação do cuidado na rede assistencial.