As estatísticas sanitárias na Primeira República (1889-1930), a construção de sua legitimidade entre autoridades e especialistas e a utilização dos números no debate público estiveram em pauta na apresentação do pesquisador Alexandre de Paiva Rio Camargo, em mais uma edição do “Encontro às Quintas”, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Professor do Programa de Mestrado em Sociologia Política da Universidade Cândido Mendes (Ucam), Alexandre Camargo é doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e recebeu a menção honrosa no Prêmio Capes 2017, na área de Sociologia, por sua tese de doutorado “A construção da medida comum: estatística e política de população no Império e na Primeira República”.
Com o objetivo de discutir as estatísticas sanitárias não como fonte de pesquisa, mas como objeto de estudo, Alexandre Camargo traçou uma breve genealogia das estatísticas durante o Império (1822-1889) e investigou a construção social de sua autoridade a partir da República.
O professor e pesquisador ressaltou o pioneirismo da problematização da população na área da saúde e explicou como as estatísticas se constituíram em tecnologia de tradução de interesses da nova geração de médicos brasileiros influenciados pela chamada Revolução Pasteuriana. A criação do Instituto Pasteur, em 1888, em Paris, marcou o desenvolvimento das investigações sobre o papel dos microrganismos na causa de diversas doenças e proporcionou maior legitimidade para os experimentos de laboratório.
“É preciso pensar a genealogia da estatística como tecnologia de governo. De construção e tradução de interesses. Genealogia significa pensar que números nem sempre tiveram autoridade. A autoridade dos números vem da certificação do Estado. A questão que se coloca é: como se constrói a autoridade dos números através da confiança pública? ”, afirmou Alexandre Camargo.
Construção da reputação estatística
Em sua apresentação no “Encontro às Quintas”, o pesquisador contextualizou a utilização das estatísticas durante o Império brasileiro, período em que as estimativas de população feita por indivíduos particulares gozavam de mais prestígio do que as do Censo. “O Censo de 1872 foi o primeiro censo nacional, obedecendo às convenções internacionais de estatística, mas teve seu uso muito restrito, sem interferência no debate público”. Alexandre explicou também as dificuldades para se trabalhar a questão da estatística populacional no Brasil durante o século XIX. “Os levantamentos existem desde o Império, mas a estatística precisa e depende de certas equivalências, que permitem que nós sejamos comparáveis. Em uma sociedade com um legado escravista e colonial, é mais difícil de construir esses parâmetros”.
Um dos pontos de virada no tema durante a República foi justamente a organização do serviço de demografia sanitária e a sua subordinação às necessidades do laboratório pasteuriano. Identificada, desde então, ao revolucionário modelo bacteriológico e aos interesses de uma nova geração de médicos, a estatística era a principal fonte de confirmação do diagnóstico pasteuriano. A publicação quinzenal de boletins demográficos dentro do periódico Brasil Médico, a partir de 1894, contribuiria para a constituição da autoridade social dos números e para a percepção de fluxos e continuidades. “As estatísticas sanitárias integram e passam a ser um dispositivo fundamental dos procedimentos de laboratório instituídos pela Revolução Pasteuriana no Brasil”, disse Alexandre Camargo.
Citando o exemplo de nomes como Aureliano Portugal, Bulhões de Carvalho e Azevedo Sodré, referências em demografia sanitária no período, Alexandre Camargo detalhou o processo de consolidação das estatísticas como referências públicas ao longo da Primeira República. “Os médicos demografistas não só publicam os boletins e anuais demógrafos sanitários. Eles oferecem interpretações desses dados, recuperando as séries históricas e propondo teses inovadoras e desafiadoras. A confirmação estatística do diagnóstico e da eficácia profilática minava a resistência de médicos, políticos, cafeicultores”, comentou.
Perspectiva sanitarista
Outro capítulo fundamental na construção social das estatísticas como referentes públicos é o Censo de 1906, que concede um tratamento privilegiado aos temas ligados à saúde e avança no sentido da “monumentalização estatística da reforma sanitária”. Entre outras novidades, o Censo oferece uma perspectiva fortemente sanitarista sobre a população e atribui uma importância inédita à densidade demográfica, permitindo a visualização do zoneamento sanitário da cidade e de seus focos epidêmicos. “O Censo de 1906 é emblemático por vários aspectos, como a introdução dos gráficos pictóricos. Já existe uma preocupação em divulgar os números. A valorização do censo sanitário passa pela afirmação de um projeto higienista”, afirmou o professor da Universidade Cândido Mendes.
A emergência de um novo olhar sobre o Brasil – a questão nacional – e a generalização da perspectiva sanitarista, nas primeiras décadas do século XX, resultaram em serviços fundamentais, como a instalação dos postos de profilaxia rural e de educação sanitária. “Na república oligárquica brasileira, os estados são atomizados e responsáveis pela saúde e educação. Os novos serviços mostram que é possível centralizar a autoridade sanitária sem disputar a centralização política”. Apesar do debate em torno do interesse público, Alexandre Camargo ressalva que as estatísticas ainda não serviam, em nenhum momento da Primeira República, para determinar focos prioritários de alocação de recursos. “Isso só vai acontecer no Brasil nos anos 1940 e 1950”, esclareceu.
O que Alexandre Camargo definiu como a “construção estatística da dimensão nacional” tem mais um capítulo fundamental no Censo de 1920, cuja chave de análise é a regionalização. A segmentação dos dados possibilitou novas comparações e percepções sobre o espaço nacional. “A apresentação por regiões fornece uma equivalência para medir a desigualdade, configurando um padrão socioespacial dos fenômenos populacionais, que o recorte político anterior contribuía para isolar e mitigar”. Ainda de acordo com o pesquisador, a comparação sistemática entre os estados traz à tona a problematização das insuficiências da ordem oligárquica, que motivaria, em última análise, a Revolução de 1930. “É preciso entender como a estatística pôde se tornar uma linguagem pública e alcançar uma dimensão nacional, grande demais para ser contida ou administrada pela Constituição de 1891 e pela ordem oligárquica”, concluiu Camargo.
Encontro às Quintas
Promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), o “Encontro às Quintas” apresenta conferências de professores e pesquisadores de instituições nacionais e internacionais sobre temáticas no campo da história e historiografia, história das ciências e história da saúde pública. Confira aqui as próximas atividades do Programa.