Em revisão historiográfica publicada pela revista HCSM, pesquisador relata que problemas relacionados à alimentação na América Latina são seculares
Por Karine Rodrigues
Nas primeiras décadas do século 20, a multinacional norte-americana United Fruit Company, destaque na produção e no comércio de frutas tropicais, encontrou uma maneira de lidar com a desnutrição de seus trabalhadores na Costa Rica: importar enlatados e alimentos processados dos Estados Unidos. Na mesma época, a solução para a alta mortalidade infantil na zona bananeira foi a introdução de um alimento artificial desenvolvido pela Nestlé. Anos depois, no México, o governo entrou na onda dos alimentos “fortificados”, promovendo o consumo de açúcar enriquecido com vitaminas.
A obesidade e outras questões relacionadas surgem a partir de uma ampla gama de fatores. [O termo] "epidemia” parece medicalizar um fenômeno que tem origem médica, mas também política, social e econômica.
Não, a obesidade não surgiu da noite para o dia na América Latina, observa o historiador Jonathan Ablard, professor do Ithaca College, nos Estados Unidos. Ao contrário do que se possa imaginar, está associada à fome, que em tempos de pandemia tem recrudescido globalmente. Segundo estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) lançado no ano passado, estimativas conservadoras indicam que mais de 3 bilhões de pessoas no mundo não tinham como bancar uma alimentação saudável, que, em média, custava cinco vezes mais do que uma dieta com alimentos ricos em amido, como a farinha, calórica e carente em nutrientes.
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Jonathan Ablard. Foto: Theodor Zerivitz/The Ithacan. |
No Brasil, 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar nos últimos meses do ano, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan). Ao mesmo tempo, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em outubro passado, apontam a necessidade urgente de políticas públicas também para conter o avanço da obesidade. Entre 2003 e 2019, a proporção de obesos na população com 20 anos ou mais de idade mais que dobrou e chegou a 26,8%.
“Paradoxalmente, fome e obesidade são problemas interligados. Ambos são indicadores de desigualdade social e econômica, de disparidades raciais na saúde, conflitos de interesse entre os atores estatais e as empresas e um abandono geral do Estado em sua responsabilidade de cuidar dos mais vulneráveis. Vimos problemas de saúde relacionados à desnutrição, obesidade e supernutrição coexistindo nos Estados Unidos desde a década de 1960. As áreas de baixa renda, rurais e urbanas, são frequentemente chamadas de “desertos alimentares”, onde as únicas opções de alimentos vêm de lojas de postos de gasolina e lojas de conveniência”, relata Ablard.
Existem muitos movimentos sociais que defendem um retorno à alimentação de seus ancestrais. […] Essas organizações existem em todo o mundo e, no mínimo, estão protestando contra o pensamento anticientífico e anti-histórico
Autor de A constituição da transição nutricional latino-americana em uma perspectiva histórica, 1850 até o presente, revisão historiográfica publicada na mais recente edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 28 no.1 Mar. 2021), da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Ablard analisou, em especial, fontes secundárias para escrever seu artigo, no qual mostra que os problemas relacionados à alimentação, na verdade, não são um fenômeno recente entre a população latino-americana. Há relatos surpreendentes, como os que revelam a longa história de patologização da comida indígena e local, apontadas como pobres em nutrientes.
Perguntado sobre como a perspectiva histórica pode ajudar a reverter as mudanças negativas ocorridas durante a longa transição nutricional na América Latina, Ablard faz referência à dificuldade do contexto atual, em que a ciência e a história estão sob ataques negacionistas, mas ainda assim se diz otimista:
“Existem muitos movimentos sociais que defendem um retorno à alimentação de seus ancestrais. No México, o Sin Maíz No Hay País estruturou seu trabalho em duas grandes linhas: pesquisa científica sobre alimentos e consciência histórica sobre os benefícios dos alimentos tradicionais mexicanos. Essas organizações existem em todo o mundo e, no mínimo, estão protestando contra o pensamento anticientífico e anti-histórico”, relata o pesquisador. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
No artigo, você argumenta que o aumento da obesidade e outros problemas de saúde relacionados à alimentação na América Latina não são tão recentes como geralmente é tratado pela literatura científica e também no noticiário. Teriam começado no fim do século 19. O que o fez investigar essa possibilidade?
Este projeto começou por acaso. Uma década atrás, eu estava na Cidade do México para uma conferência e li um artigo de jornal que informava que o México estava com taxas de obesidade maiores do que as registradas nos Estados Unidos. No início, aceitei a notícia, mas depois comecei a conversar com meus colegas mexicanos, que compartilharam suas observações pessoais sobre as mudanças na dieta ao longo da vida. Éramos todos historiadores da psiquiatria, ninguém havia estudado aquele assunto. Comecei, então, a formular questões, começando por me perguntar: quando esse processo teria começado? À medida que aprofundei as leituras, comecei a ver que o Índice de Massa Corporal (IMC) para medir e quantificar a obesidade é um conceito problemático, que a comida está ligada à política e à economia de maneiras que eu [já] imaginara.
Você recorreu a que fontes para fazer a revisão historiográfica? Durante a investigação, quais foram os casos mais reveladores da existência de uma mudança na alimentação em curso desde o século 19?
A maior parte de minhas fontes são secundárias e tratam da história da alimentação. Li esses trabalhos procurando pistas para entender a longa história da transição nutricional. Também li muitos dos principais trabalhos sobre a transição nutricional escritos por cientistas sociais e especialistas em nutrição. Meu objetivo era preencher a lacuna entre a historiografia da alimentação e a literatura científica. Encontrei algumas fontes muito significativas, e acho que subutilizadas, como as publicações pioneiras do Dr. Adolfo Chávez, médico e pesquisador mexicano, que detectou altas taxas de obesidade e diabetes no México no início dos anos 1960.
No decorrer da pesquisa, fiquei surpreso ao aprender sobre a longa história de patologização da comida indígena e local, apontada como pobre em nutrientes
Um dos primeiros sinais mais notáveis da transição nutricional é a chegada da Coca-Cola aos enclaves da United Fruit Company e às principais zonas urbanas. Nas regiões costeiras caribenhas da América Latina, a United Fruit Company costumava receber direitos de distribuição e engarrafamento da empresa sediada em Atlanta. Nosso entendimento de como a Coca-Cola operava na América Latina é uma história não totalmente explorada até agora, porque o acesso aos arquivos da empresa, em sua maioria, foram fechados aos pesquisadores. Julio E. Moreno, da Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos, está escrevendo um livro sobre a história da Coca-Cola na América Latina. Estou ansioso para ver este trabalho porque ele é o primeiro acadêmico a obter acesso total aos arquivos da Coca-Cola dos Estados Unidos e da América Latina.
Devo mencionar também uma matéria fantástica, recente, sobre a comercialização de produtos Nestlé no Brasil: Como a Nestlé se apropriou das receitas brasileiras (ou de como viramos o país do leite condensado), de Luisa Coelho e João Peres. É um texto importante porque aborda não apenas o momento da chegada desses produtos, mas precisamente como a empresa os comercializou. Que eu saiba, não existe um estudo abrangente sobre a história da Nestlé, com base em seus arquivos.
Como essa revisão historiográfica pode ajudar a reverter mudanças negativas ocorridas durante a longa transição nutricional na América Latina?
Esta é uma pergunta difícil de responder em um momento histórico em que a ciência e a história estão sendo atacadas por teorias da conspiração e vendedores de desinformação. De forma otimista, direi que existem muitos movimentos sociais que defendem um retorno à alimentação de seus ancestrais. No México, o Sin Maíz No Hay País estruturou seu trabalho em duas grandes linhas: pesquisa científica sobre alimentos e consciência histórica sobre os benefícios dos alimentos tradicionais mexicanos. Essas organizações existem em todo o mundo e, no mínimo, estão protestando contra o pensamento anticientífico e anti-histórico.
O consumo de alimentos ricos em gorduras e açúcar é uma das faces dessa transformação nos hábitos alimentares. Alimentos saudáveis, como milho e aveia, passaram a ser propalados pela indústria como insuficientes, em comparação com alimentos sabidamente inferiores do ponto de vista nutricional…
No decorrer da pesquisa, fiquei surpreso ao aprender sobre a longa história de patologização da comida indígena e local, apontada como pobre em nutrientes. O trabalho de Jeffrey Pilcher é exemplar ao descrever como cientistas mexicanos reorientaram a visão sobre os hábitos alimentares indígenas em meados do século 20. Da mesma forma, nos Estados Unidos, nutricionistas declararam que a comida italiana não era saudável porque baseada em vegetais e não tinha carne suficiente. A dieta estava associada à suposta patologia dos imigrantes italianos. Quando a Itália se juntou aos Aliados na Primeira Guerra Mundial, e restrições à carne foram impostas, a culinária italiana começou a ganhar aceitação.
O Brasil é terceiro maior produtor de alimentos do mundo e convive com a insegurança alimentar grave, de acordo com o IBGE. No país, obesidade e sobrepeso também são um problema. O que uma revisão historiográfica sobre a transição nutricional latino-americana pode nos dizer sobre essa aparente contradição?
Paradoxalmente, fome e obesidade são problemas interligados. Ambos são indicadores de desigualdade social e econômica, de disparidades raciais na saúde, conflitos de interesse entre os tomadores de decisão do governo e as empresas e um abandono geral do Estado em sua responsabilidade de cuidar dos mais vulneráveis. Vimos problemas de saúde relacionados à desnutrição, obesidade e supernutrição coexistindo nos Estados Unidos desde a década de 1960. As áreas de baixa renda, rurais e urbanas, são frequentemente chamadas de “desertos alimentares”, onde as únicas opções de alimentos vêm de lojas de postos de gasolina e lojas de conveniência.
Considerando que a história da transição nutricional na América Latina é mais antiga do que supomos, podemos dizer que estamos enfrentando hoje uma epidemia de obesidade?
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Anúncio da Coca-Cola. |
Não tenho certeza se "epidemia" é o termo certo. Vejo o problema da obesidade e outros relacionados à nutrição surgindo ao longo de um longo período de tempo. Uma epidemia implica algo que surge repentinamente e, por implicação, pode ser erradicado. O termo “epidemia” também pode ser usado para estigmatizar pessoas com IMC alto. Finalmente, a obesidade e outras questões relacionadas surgem a partir de uma ampla gama de fatores. “Epidemia” parece medicalizar um fenômeno que tem origem médica, mas também política, social e econômica.
Embora exista um movimento em prol de alimentos saudáveis, os preços são inviáveis para grande parcela da população. Não dá para falar sobre segurança alimentar sem falar sobre desigualdade. É como disse o brasileiro Josué de Castro, autor do clássico Geografia da Fome: “a fome não é um fenômeno natural, mas social”.
Sim, concordo plenamente com essa frase. Ao escrever a revisão historiográfica, deixei escapar um artigo muito bom de Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, no qual ele conecta o clássico de Josué de Castro à nova paisagem alimentar, onde fome e supernutrição se sobrepõem. Para mim, isso sugere que a pesquisa sobre a conexão entre fome e supernutrição ainda está em seus estágios iniciais.
A indústria do tabaco se fortaleceu às custas da saúde da população, causando danos graves e numerosos, em especial, os relacionados ao câncer. Ainda assim, o mundo demorou a determinar sanções. Em relação à indústria de alimentos, já se sabe que açúcar, gorduras e alimentos processados causam problemas crônicos de saúde, mas a reação parece desproporcional aos danos…
Fiquei muito impressionado com os paralelos entre as campanhas políticas e publicitárias da Big Tobacco há várias décadas e os interesses das indústrias do açúcar e dos alimentos processados hoje. No início de 2000, o governo dos Estados Unidos lutou muito contra as melhores diretrizes de nutrição que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estava promovendo. Meu governo estava protegendo os interesses econômicos ligados à indústria do açúcar e outras empresas alimentícias.
A deslocalização dos alimentos, fenômeno pelo qual os alimentos consumidos deixam de vir dos produtores locais e passam a chegar de fontes cada vez mais distantes do local de consumo, podem causar mudanças que vão além das questões nutricionais?
A deslocalização, que não é um fenômeno novo, certamente cria outros problemas. Onde a produção local é suplantada pela monocultura para exportação, observamos um crescimento importante na importação de alimentos para consumo. Vemos isso começando bem cedo, com as ilhas açucareiras do Caribe, onde os escravos calcularam que era mais econômico importar bacalhau e charque do que fazer com que os escravos cultivassem seus próprios alimentos. Grande parte do Caribe tem sido importador de alimentos desde então.
Globalização, turismo, migração, marketing. Como esses fatores impactaram na transformação dos hábitos alimentares?
Estudiosos como Richard Wilk argumentaram que o turismo e a migração aceleraram a introdução de práticas alimentares modernas e industrializadas em zonas dependentes do turismo. A comida local torna-se muito cara, os hotéis importam comida de longe, e os trabalhadores muitas vezes vivem nas instalações do hotel ou resort. A migração cria outros tipos de desafios. Desde a década de 1970, por exemplo, pesquisadores detectaram deterioração da saúde de pessoas que migram do México para os Estados Unidos. Muitos dos problemas de saúde estão relacionados a questões de dieta e estilo de vida.
Você já esteve no Brasil? Acompanha os estudos mais recentes sobre o tema no Brasil e a situação do país, que em 2014 saiu do Mapa da Fome da ONU, mas já amarga uma piora?
Infelizmente, nunca estive no Brasil, mas acompanho atentamente a crise atual por meio de notícias e colegas que vivem no país. A má gestão da Covid-19 pelo governo Bolsonaro é criminosa. Como vimos nos Estados Unidos, a pandemia revelou as fraturas e desigualdades sociais que existiam logo abaixo da superfície. Se Donald Trump tivesse continuado como presidente, nem posso imaginar como a doença e as crises sociais que a acompanham teriam se desenrolado aqui.