por Jacqueline Boechat
A importância dos arquivos científicos vai além de questões relacionadas ao processo produtivo da pesquisa e da comunicação dos resultados obtidos. Esses arquivos registram a construção do saber científico, o trabalho de pesquisadores, as relações institucionais, enfim, encerram informações históricas de valor testemunhal e base para a preservação da memória da ciência. No entanto, sua gestão ainda é um desafio para as instituições que produzem uma quantidade considerável de documentos dessa natureza, caso dos laboratórios de pesquisa Fiocruz.
É o que revela o artigo ‘Documentos de arquivo produzidos pela atividade científica: uma análise dos cadernos de laboratório do Instituto Oswaldo Cruz” do diretor e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, Paulo Elian, que apresenta um panorama da gestão de arquivos em 15 laboratórios do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz, em particular, do caderno de laboratório, documento no qual são registrados os procedimentos, métodos e técnicas de experimentação e que permitem a rastreabilidade de todo o percurso do trabalho no laboratório. A pesquisa aponta para a necessidade de fortalecer a gestão de arquivos nessas unidades de pesquisa, apoiada em métodos e técnicas arquivísticas.
O caderno de protocolo descreve as rotinas da pesquisa em sua fase de desenvolvimento. No detalhe, o caderno de protocolo de pesquisa do Laboratório de Hanseníase do IOC. Foto: Acervo COC |
O estudo publicado pelo periódico científico Comma, do Conselho Internacional de Arquivos (ICA), identificou os diferentes tipos de caderno de laboratório, os nomes atribuídos a eles pelos próprios pesquisadores do IOC e como esses documentos podem se alterar e se manter no decorrer do tempo. Foi possível também perceber que não há um padrão absoluto de gestão: “Em suma, existem diferentes cadernos que resultam ou servem a atividades distintas, que têm gestão muito variável. Isso foi um avanço do estudo”, pontua Elian.
A escolha do objeto de estudo
Os resultados apresentados pelo artigo se referem a uma das etapas de uma pesquisa mais ampla ‘As ciências biomédicas e a trajetória do IOC: uma análise dos arquivos institucionais e pessoais’, desenvolvida com recursos do edital Papes VII (Jovem Doutor/ Fiocruz-CNPq). Na primeira etapa do projeto, entre fevereiro e dezembro de 2016, foi realizada uma coleta de dados para a elaboração do diagnóstico dos arquivos de 15 (20,8%) dos 72 laboratórios que compõem a estrutura organizacional do IOC, unidade da Fiocruz dedicada ao desenvolvimento tecnológico, investigação, ensino e prestação de serviços especializados nos campos das ciências biomédicas e da saúde pública.
Na imagem, a equipe da COC entrevista técnicos e cientistas do Laboratório de Leishmaniose (IOC). Foto: Acervo COC |
A Fiocruz passou a incorporar procedimentos arquivísticos na década de 90, com a implantação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos (Sigda), sob coordenação da COC, mas o projeto não foi assimilado pelo amplo universo dos laboratórios institucionais. Paulo explica que isso se deve em parte ao universo expressivo de laboratórios institucionais, cada um com características e cultura específicas: “O laboratório é o lugar da ciência, por excelência”, afirma o pesquisador. “A Fiocruz nacional possui algumas centenas de laboratórios. Só o IOC hoje conta com 72! É uma escala invejável”, ressalta.
Após a coleta de informação por meio de entrevistas com as equipes dos laboratórios e da identificação preliminar dos documentos neles acumulados, foi possível identificar um vasto universo de documentos produzidos e acumulados pelos laboratórios, ‘células’ organizacionais complexas que têm por base a pesquisa, mas comportam outras funções, como ensino, formação de recursos humanos, divulgação cientifica, atendimento ambulatorial e gestão. Nesse conjunto de documentos, o caderno de laboratório foi eleito como objeto de estudo por conta da sua relação intrínseca com a prática das atividades cientificas.
Gestão dos cadernos de laboratório ainda não é padronizada
Esses cadernos recebem nomenclaturas diferentes, conforme o laboratório, e geralmente são regulados por normas externas: 73% dos laboratórios seguem normativas e parâmetros da gestão da qualidade, requisitos obrigatórios para o credenciamento no Sistema de Qualidade. Apesar de haver responsáveis pela guarda e manutenção dos documentos em 66% deles, apenas 33% têm conhecimento e prática no tratamento documental apoiado em métodos e técnicas arquivísticas, disseminados por eventos e curso de capacitação da Fiocruz. “Não há um padrão absoluto de gestão dos cadernos”, frisa Paulo Elian.
O 'livro verde' é uma versão do caderno de
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Apesar do artigo revelar que já existe uma preocupação com a gestão dos arquivos em alguns laboratórios, também evidencia que esse cuidado está relacionado principalmente ao atendimento das questões de qualidade. Entretanto, como alerta o pesquisador, dada a importância dos arquivos gerados pela atividade cientifica, é indispensável que o seu tratamento ocupe lugar na pauta dos estudos e das ações programáticas voltadas à gestão de documentos, em outras palavras: “É preciso que o Programa Institucional de Gestão de Documentos chegue aos locais de produção científica da Fiocruz”, defende Paulo Elian.
Para isso acontecer, deve haver uma forte interação com os cientistas, um trabalho de convencimento, como defende Paulo Elian: “Sou um incentivador dessa aproximação entre a teoria da gestão de arquivos e as unidades de pesquisa. Há alguns anos meus projetos têm como um de seus campos empíricos os laboratórios do IOC”. O pesquisador diz ainda que outros produtos vêm sendo desenvolvidos pelo Sistema Institucional de Gestão de Arquivos para servir a cientistas e técnicos e abordar o tema de forma mais direta. É o caso do vídeo ‘Cadernos de laboratório’, lançado em 2019 como resultado do projeto.