Composição de Silmara Mansur a partir de obras de Jenő Doby, József Marastoni e György Klösz. |
Por Jacqueline Boechat e Haendel Gomes
Lavar as mãos. Este hábito tão simples quanto antigo vem sendo repetido como mantra pelas autoridades sanitárias do mundo inteiro como uma das armas mais eficazes na luta para conter a Covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov2). Desde março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia, houve uma verdadeira cruzada para conscientizar as pessoas sobre a importância de lavar as mãos e evitar aglomerações. No entanto, se a lavagem das mãos ainda é um desafio no século 21, no século 19, esse tipo de questão quase inexistia. Os hospitais, as ‘Casas de Morte’, eram espaços em que doentes ficavam amontoados, em salas pouco ventiladas, sem acesso a higiene e água limpa. Os mais abastados preferiam se tratar em casa, onde as taxas de mortalidade chegavam a ser de três a cinco vezes menores.
A transformação de enunciados e alegações em fatos científicos aceitos e legitimados depende de um intenso processo de negociação e disputas em busca da produção de consensos compartilhados
Nessa época, ir ao hospital para ter um bebê, por exemplo, era quase uma sentença de morte. Foi o que observou em 1846 o recém-nomeado assistente do diretor e residente-chefe da Clínica de Maternidade do Hospital Geral de Viena, o médico húngaro Ignaz Semmelweis. Preocupado com a mortalidade por febre puerperal ou pós-parto, ele percebeu uma diferença sinistra entre as clínicas sob sua responsabilidade: as mortes na clínica utilizada para o ensino de jovens médicos onde, além dos partos, realizavam-se autópsias e cirurgias, chegavam ao triplo da outra, onde era feito o treinamento de enfermeiras-parteiras.
O médico atribuiu essas mortes, então, ao que chamou de ‘partículas cadavéricas’ que, aderidas às mãos dos médicos, estariam contaminando as pacientes. Atualmente, a relação entre doenças e contaminação por micro-organismos é reconhecida como um problema de saúde pública e um desafio global pela OMS, mas em meados do século 19, a recomendação de Semmelweis de que os médicos deveriam lavar as mãos e os instrumentos cirúrgicos em solução de cal clorada para evitar a febre puerperal enfrentou oposição.
O primeiro estudo experimental relacionado à lavagem das mãos
Ignaz Semmelweis. Foto: Jenő Doby.. |
A partir de informações estatísticas e observações do que acontecia nas duas salas, o médico passou a formular hipóteses para explicar a discrepância. Primeiro, atribuiu as mortes ao ar contaminado pelos miasmas, mas logo descartou a suposição, pois as salas eram igualmente ventiladas. Supôs também que as mortes se deveriam à superlotação. No entanto, a clínica das enfermeiras recebia mais mulheres, que suplicavam para não serem atendidas pelos médicos. Poderia ser medo, já que o padre responsável pela extrema unção caminhava pelos corredores tocando uma campainha. A pedido de Semmelweis, o sacerdote deixou de fazê-lo, mas isso não contribuiu para diminuir as mortes. Uma a uma, essas e outras hipóteses foram desconsideradas.
Foi então que um acidente ajudou o médico a solucionar o enigma: um colega e amigo, Jacob Kolletschka, ferido pelo bisturi de um dos estudantes, havia apresentado os mesmos sintomas das parturientes antes de morrer. Ao realizar a autópsia de Kolletschka, Semmelweis descobriu que os órgãos do amigo também apresentavam aspecto semelhantes ao das mulheres vítimas da febre. Deduziu então que a sepse e a febre puerperal deveriam ter a mesma origem: as mãos de estudantes e médicos, que, sujas por dissecações recentes, transportariam ‘partículas cadavéricas’ para os órgãos genitais das mulheres em trabalho de parto. Isto explicaria ainda por que os níveis de mortalidade eram menores entre as parteiras: elas não participavam das autópsias.
O médico húngaro conduziu, então, o primeiro estudo experimental relacionando à falta de higienização das mãos e de equipamentos à febre puerperal. Semmelweis ordenou que todos lavassem as mãos com uma solução de cal clorado antes de realizar qualquer exame e observou, em poucos meses, a taxa de mortes cair drasticamente, de 12,24% a 3,04%, ao fim do primeiro ano, e a 1,27% ao término do segundo, fato registrado na Enciclopédia Britânica (1956).
A batalha pelo reconhecimento da técnica
Apesar dos resultados positivos, a hipótese de Semmelweis foi alvo de muita contestação. O ponto de atrito estava para além da simples recusa em concordar com a eficácia do procedimento de higiene das mão. Em primeiro lugar, é preciso considerar que o êxito do médico húngaro – hipótese sobre contaminação e recomendação de profilaxia – estava circunscrito à prática clínica e carecia de um método científico, como testes experimentais e generalização da hipótese, a exemplo do que ocorre normalmente nas construções científicas.
'Carta aberta a todos os professores de obstetrícia'. |
Além disso, a hipótese de Semmelweis contrariava o paradigma vigente, a teoria miasmática: “Somente mais tarde, a era da bacteriologia, iniciada com os trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, forneceu uma nova racionalidade ao uso de substâncias antissépticas utilizadas por cirurgiões. Nesse campo, os artigos publicados por Joseph Lister, na revista The Lancet, em 1867, documentando suas experiências com o uso do spray carbólico, tiveram enorme impacto”, explica o historiador Flavio Edler, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). No Brasil, a introdução da técnica foi paulatina. “Desde a década de 1880, já há menções ao curativo de Lister como ‘profilaxia das septicemias cirúrgicas’ para evitar a ‘fermentação pútrida’, descoberta por Pasteur”, afirma o historiador.
Em segundo lugar, também havia razões institucionais: a ausência de publicações em periódicos científicos e a difícil relação com a comunidade médica. Semmelweis se recusou durante muito tempo a escrever artigos e difundir suas descobertas. Quando o fez, em 1861, utilizou o livro ‘A etiologia, o conceito e a profilaxia da febre do pós-parto’ para atacar os médicos que não concordavam com ele, atribuindo-lhes a responsabilidade pela morte das vítimas da febre do pós-parto. Obviamente, a obra gerou muitos confrontos e o húngaro se viu relegado ao ostracismo.
Somente mais tarde, a era da bacteriologia, iniciada com os trabalhos de Louis Pasteur e Robert Koch, forneceu uma nova racionalidade ao uso de substâncias antissépticas utilizadas por cirurgiões
Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz, a historiadora Simone Kropf alerta que a produção de fatos científicos não é resultado da mera aplicação de um método puramente fundado na observação empírica da natureza, mas envolve diversos fatores. “Trata-se de um processo diretamente relacionado a elementos de ordem social, cultural e política, que afetam não apenas o entorno das ciências, mas as próprias ideias científicas. Nesse sentido, a transformação de enunciados e alegações em fatos científicos aceitos e legitimados depende de um intenso processo de negociação e disputas em busca da produção de consensos compartilhados”, afirma.
Semmelweis adoeceu e acabou sendo internado em um hospício, onde morreu meses mais tarde. Dentre as teorias que circulam sobre sua morte, a mais difundida é que, ao se cortar, em um acesso de loucura, a ferida produziu a febre contra a qual lutou durante sua carreira. Uma outra sustenta que as surras que levou na instituição onde foi internado provocaram uma lesão fatal. Embora não tenha conseguido apresentar uma explicação nos moldes do que se considerava um enunciado científico, nem quebrar a resistência do paradigma científico do seu tempo, a receita simples de Ignaz Semmelweis de ‘lavar as mãos’ tem salvado vidas desde então.
História como antídoto ao negacionismo científico
Diante do cenário de crise sanitária, os meandros e processos da história de Semmelweis ajudam a compreender a ciência como uma atividade coletiva de produção de consensos, que envolve controvérsias, associações entre determinados grupos em momentos históricos específicos, e a considerar as relações constitutivas entre ciência, política e sociedade. Em especial, a historicidade convida a refletir sobre as disputas que marcam tais processos de negociação.
As estratégias dos 'mercadores da dúvida' são sempre as mesmas: semear incertezas para enfraquecer e solapar consensos científicos
A historiadora conta que o negacionismo da ciência, sob a forma em que se apresenta hoje em dia remonta à atuação da indústria do tabaco na década de 1950, quando esta se viu ameaçada diante de estudos que evidenciavam a relação entre fumar e certas doenças, como o câncer. Além dos que negaram os efeitos nocivos do tabaco, a ciência tem enfrentado os que negam as vacinas e a emergência climática. “As estratégias dos ‘mercadores da dúvida’, citando o título do livro de Naomi Oreskes e Erik Conway, são sempre as mesmas: semear incertezas para enfraquecer e solapar consensos científicos”, compara Simone.
Essas estratégias geralmente contam com supostos especialistas para confrontar os enunciados científicos em espaços externos e alternativos às instituições e práticas de certificação da ciência (que são os periódicos, congressos e demais espaços e procedimentos de avaliação por pares), o que atualmente é facilitado pelas mídias sociais, que, segundo Simone, “são um meio [dos negacionistas] para reivindicar autoridade e credibilidade que nunca teriam nos meios científicos institucionalizados”. A historiadora alerta, por fim, que tais negacionismos sempre representam interesses econômicos e políticos, seja no caso da indústria do tabaco, ou na contestação das medidas sanitárias para enfrentar a disseminação do coronavírus e, como tais, devem ser expostos. “A ciência, como qualquer atividade da vida social, é indissociável da política”, conclui.