De um lado, os poderes municipal e federal tentando reformar e sanear a então capital da República. Do outro, proprietários, inquilinos e cidadãos do Rio de Janeiro defendendo seus direitos nas ruas e nos tribunais. Os conflitos jurídicos que cercaram as reformas urbanas no início do século 20 foram a base da apresentação de Pedro Cantisano (Kenyon College/EUA) na última edição do Encontro às Quintas. O evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) aconteceu em 13 de junho, no Centro de Documentação e História da Saúde (CDHS), em Manguinhos (RJ).
Bacharel em Direito, com mestrado em Direito e doutorado em História na Universidade de Michigan, Pedro Cantisano trouxe novos olhares para um tema muito conhecido da historiografia brasileira, que são as reformas promovidas pelo prefeito da capital Pereira Passos e pelo sanitarista Oswaldo Cruz nas primeiras décadas do século 20 no Rio de Janeiro. “O direito não foi apenas uma ferramenta de controle social por parte dos poderosos, como muitos historiadores brasileiros pensavam, mas uma arena de conflitos, em que pessoas excluídas também podiam participar. Diferentes personagens, como advogados, sanitaristas e pessoas comuns tomaram parte nesses debates sobre a cidade”, explica.
Refletindo sobre a interação entre as práticas de cidadania política nas ruas e as práticas de cidadania dentro dos tribunais, Pedro Cantisano revelou como o saber técnico-científico dos engenheiros e dos médicos que estavam à frente das reformas urbana e sanitária se relacionou com o saber jurídico e retórico dos advogados. “Essas diferentes visões de cidade estão presentes nos processos judiciais relativos a desapropriações e despejos durante as reformas do início do século 20. Todos esses personagens participam ativamente dos debates”, afirma o historiador.
De acordo com Pedro Cantisano, a regulamentação da ocupação urbana no Brasil se estruturou em torno da ideia de poder de polícia desde os tempos da colônia portuguesa. Na virada para o século 20, com a necessidade de justificar a intervenção em despejos e desapropriações, o Estado estruturou toda uma arquitetura jurídica para efetivar e acelerar o processo. "Uma série de leis e decretos emitidos entre 1902 e 1904 serviram para dar base às reformas urbanas e desde então receberam críticas", exemplificou o historiador, destacando como esses saberes jurídicos circularam em jornais de grande alcance e revistas especializadas na época.
As intervenções urbanas e sanitárias na capital federal, em nome da administração e da saúde pública, provocaram a reação de proprietários, inquilinos e cidadãos comuns do Rio de Janeiro, que reclamaram, muitas vezes nos tribunais, das graves ameaças aos direitos individuais, à propriedade, à inviolabilidade de domicílio e ao exercício livre de profissão e de comércio. "A ideia da casa como um lugar santo e inviolável é muito presente. Esse direito individual é antigo, um valor tradicional, mas foi modernizado em termos de direitos liberais contra a intervenção estatal na esfera privada de vida. A circulação das ideias jurídicas, sobretudo nos jornais, fortalece uma consciência sobre direitos da população da cidade", comentou.
Pedro Cantisano utilizou casos emblemáticos da justiça da época que contestavam a constitucionalidade, por exemplo, dos expurgos sanitários, para demonstrar como, de fato, o direito serviu como arena de disputas pela cidade. A partir de laudos confeccionados por engenheiros, enquanto árbitros dos processos, tanto o Estado quanto os cidadãos reafirmavam ou questionavam também as ordens de despejo e desapropriação.
“Os procuradores do município basicamente queriam diminuir o valor da desapropriação e tornar o processo mais rápido. E os advogados dos proprietários interpretavam os laudos e os conhecimentos criados pelos engenheiros para aumentar o valor da indenização. Por isso é possível afirmar que os debates jurídicos moldaram a reforma da capital”, complementou Cantisano.