“Estes desastres não são naturais e não devem ser naturalizados. O rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho não são excepcionalidades, mas parte dos riscos humanos, sociais e ambientais que a atividade de mineração tem provocado no Brasil e no mundo”, defendeu Carlos Machado de Freitas, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz). “Não usamos a palavra tragédia porque ela esconde o fato de que existem responsabilidades, é crime, é um acontecimento resultante de processo de exploração devastadora”, explicou José Miguel Wisnik, professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP). Os especialistas participaram do debate “Mariana e Brumadinho: fraturas expostas”, que promoveu uma reflexão sobre os desastres, em Minas Gerais, a partir do olhar da história e da literatura, durante a aula inaugural 2019 da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Na ocasião, Carlos Machado Freitas lembrou que os desastres mais graves da mineração, em âmbito mundial, ocorreram no século 20, entre as décadas de 60 e 70, sendo o na Bulgária, com 488 mortos, o maior deles. No Brasil, de acordo com o especialista, o número deste tipo de desastre aumentou a partir do século 21. “Em uma perspectiva histórica, é necessário compreender os processos que contribuíram para que o Brasil ocupe um papel de destaque, não na sustentabilidade ambiental ou na promoção da saúde, mas na degradação ambiental e nas mortes causadas por este tipo de evento”, destacou. “Os desastres da Samarco, em Mariana, em 2015, e da Vale, em Brumadinho, em janeiro deste ano, juntos, somam mais de 300 mortos e 642 desabrigados. Em ambos os casos, assistimos de maneira muito explícita como as instituições são incapazes, pelo menos nas formas que estão organizadas atualmente, de lidar com esses problemas e garantir respostas rápidas e estruturadas”, ressaltou.
Para Carlos Machado de Freitas, além de os cidadãos que são atingidos e expostos, que têm seus modos e condições de vida radicalmente afetados, é imprescindível pensar os novos cenários produzidos pelos desastres. “Estes novos cenários incluem a contaminação e alteração ambiental, que atuam sobre a biodiversidade, o ciclo de vetores, hospedeiros e reservatórios de doenças, nos rios atingidos, na alteração abrupta da organização social e dos modos de viver e trabalhar historicamente constituído nos territórios, com efeitos sob a saúde”, finalizou.
Impacto da mineração na obra de Drummond
Autor do livro Maquinação do mundo: Drummond e a mineração, lançado em 2018, José Miguel Wisnik apresentou um vasto repertório da produção de Carlos Drummond Andrade e defendeu a atualidade da poesia de Drummond no panorama atual. “Podemos dizer que Drummond cresceu de frente para o crime, cresceu diante do cenário primordial da questão mineral brasileira, o Pico do Cauê, em Itabira. Ele foi, portanto, a primeira testemunha privilegiada, se é que podemos usar essa palavra, para a compreensão da gravidade que a questão trazia como possibilidades futuras de devastação, depredação e malefícios. Ele insistiu na ideia de que Itabira ficaria com os males e que a Vale ficaria com as vantagens e com os lucros”, explicou.
Nos artigos publicados por Drummond nos jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, na década de 1950, José Miguel Wisnik revela que o autor criticava veemente a atuação da Vale, que crescia exponencialmente, com lucros fabulosos, e era programaticamente cega para o lugar que explorava. “Era como se Itabira fosse um estoque a ser extraído e explorado e nada mais do que isso. Não havia cuidado, atenção, ali se formava o que hoje vemos como fraturas expostas: as tragédias, as catástrofes que irão se acumular”, disse. “Por isso, a experiência trazida pelo Drummond tem uma extraordinária atualidade, tudo o que se via em Itabira anunciava os recentes acontecimentos, como o de Mariana e Brumadinho, que fazem parte de uma mesma história, que estão ligadas a mesma companhia, em uma mesma região, e atravessam esse tempo”, completou.
José Miguel Wisnik explicou que a literatura de Drummond traz a contribuição de um poeta que viveu e trouxe à tona uma situação que estava no ponto cego e que ganhou visibilidade súbita com os desastres mineiros. “Quando Drummond discutia essas questões não existia um discurso socioambiental, ecológico, esse tipo de consciência coletiva é muito posterior. Por isso, não podemos esperar encontrar nos textos dele os termos que estamos acostumados atualmente, mas eles tocam nas mesmas feridas”, destacou. “Pelo ponto de vista da poesia, existia uma tragédia humana em curso, existe uma máquina do mundo instalada e que não era possível não parar. Além disso, poesia traz também a dimensão trágica da experiência daquilo que estava silenciado”, concluiu.
A presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Nísia Trindade de Lima; a vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação da Fiocruz, Cristiani Vieira Machado, o diretor da COC, Paulo Elian; e a vice-diretora de Pesquisa e Educação da COC, Magali Romero; participaram da mesa de abertura do evento e deram as boas-vindas aos discentes.