Dissertação premiada pela Sociedade Brasileira de História das Ciências detalha as trajetórias de Ulysses Pernambucano e René Ribeiro
Foto: Silmara Mansur/iStock. |
Por Karine Rodrigues
Acusadas de mau comportamento, Virgínia, Carlota e Faustina, três moças que viviam em regime de internato no Colégio da Jaqueira, sem quaisquer sintomas de doença mental, ganharam um castigo inesquecível: foram internadas em um manicômio, onde amargaram o isolamento em “quartos de segurança”, mais apropriadamente conhecidos como masmorras. O “caso das três órfãs” do Hospício da Tamarineira, em Recife, estampou as páginas dos jornais locais em 1919 e gerou um relevante debate para as reformas psiquiátricas que seriam levadas a cabo mais adiante.
O combate àquilo que se entendia como sendo as causas sociais da loucura, fez com que um grupo de psiquiatras do Recife empreendesse uma série de pesquisas urbanas visando futuras transformações sociais
Essa é uma história de muitos atores, mas tem um protagonista: o jovem psiquiatra que descobriu as três moças na Tamarineira, Ulysses Pernambucano (1892-1943), ao assumir a direção clínica de mulheres do hospício. Ao encontrá-las confinadas em um sanatório, em razão de uma alegada insubordinação, indignou-se: relatou o caso à direção da instituição, administrada pela Santa Casa de Misericórdia do Recife. Diante da morosidade, fez alianças com seus colegas de trabalho, denunciou o fato à Sociedade de Medicina de Pernambuco e recorreu a personalidades públicas.
A mobilização surtiu efeito. Em janeiro de 1919, as moças foram transferidas, mas, na esfera pública, o “caso das três órfãs” estava só começando. Em março, o historiador e diplomata Oliveira Lima (1867-1928), que fora contatado por Pernambucano, voltou ao tema em um pronunciamento público que condenada a reclusão e foi parar na imprensa. Em resposta, a Junta Administrativa da Santa Casa de Misericórdia frisou que “as raparigas em questão” eram provenientes da roda dos expostos, onde eram deixados os bebês enjeitados. Por isso, não poderiam ser misturadas a outras órfãs, para não “confundir o trigo com o joio”.
“Expliquemos nosso pensamento. As crianças que são educadas pela santa casa, vindo pela “Roda”, em regra são taradas, por isso mesmo que vem ao mundo em horas de loucura de seus genitores, sendo muitas, o resultado de crimes monstruosos, de modo que a Santa Casa não as pode abrigar nos Colégios de “Santa Thereza” ou na “Estância”, institutos destinados a educação de “filhas família” pobres e desempregadas (…)”, diz trecho do artigo da Junta, publicado em 23 de março de 1919 no Diário de Pernambuco e no Jornal Pequeno, em resposta a Oliveira Lima.
Hospital Ulysses Pernambucano, popularmente conhecido como Tamarineira. Foto: SES/PE.
O debate sobre a legitimidade da reclusão de moças saudáveis em um manicômio rendeu muitos apartes nos jornais, detalhados no primeiro capítulo da dissertação Entre sanatórios e terreiros: Ulysses Pernambucano, René Ribeiro e o projeto reformista da psiquiatria social de Recife (1910-1940), de Renato da Silva Vicentini, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). A pesquisa foi reconhecida com menção honrosa no Prêmio da Sociedade Brasileira de História das Ciências de Dissertações 2020.
Contra isolamentos em celas e a favor de hospitais abertos
Pernambucano desaprovava métodos repressivos que constavam no regulamento da instituição, como reclusão dos doentes em solitárias e uso de colete de força. Para levar a cabo as duas reformas psiquiátricas realizadas no Estado entre as décadas de 1920 e 1930, a chegada de Sérgio Loreto ao governo do Estado foi fundamental, segundo Vicentini. Ela viabilizou a escolha do psiquiatra reformista para a direção da Tamarineira, que teve “amplos poderes e verbas para realizar as mudanças” que julgava necessárias.
Pernambucano entendia a higiene mental como um campo interdisciplinar: um médico poderia ser um higienista mental tanto quanto um juiz, um sociólogo ou um psicólogo, porque havia uma ideia de que todo desviante social, no fundo, teria algum distúrbio
“A Tamarineira pertencia à Santa Casa de Misericórdia, que não tinha verbas para tocar o projeto. Sérgio Loreto trouxe o hospital para a esfera pública e pode colocar mais verbas. Então, você vê que é uma conjunção de fatores complexos e bem aleatórios. Não dá para botar só na conta do “caso das três órfãs”, que, foi um catalisador do debate”, detalha o historiador.
Pernambucano se formara no Rio, mas, ao contrário de muitos médicos que seguiam carreira lá mesmo, após conclusão dos estudos, decidira retornar à terra natal. Discípulo dos psiquiatras Juliano Moreira, Fernandes Figueira e Ulysses Viana, em sua primeira reforma (1924-1926), quis reproduzir em Pernambuco o que vira Moreira fazer no Rio de Janeiro, combatendo métodos coercitivos usados rotineiramente nos “loucos agitados”, vide camisas de força, isolamento em celas e sedativos. Já na segunda reforma (1931-1935), além do sanatório, outros espaços, como as colônias agrícolas e hospitais abertos, com serviços ambulatoriais e de profilaxia (higiene), ganharam destaque do tratamento das doenças mentais, com base no discurso da Higiene Mental.
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Ulysses Pernambucano. Foto: Fundação Joaquim Nabuco. |
“Dá para dizer que havia traços de originalidade na segunda reforma”, diz Vicentini, contando que Pernambucano vinha mostrando isso já na década de 1920, ao criar um instituto de psicologia para trabalhar com crianças portadoras de deficiência mental, que teria sido, em nível governamental, o primeiro Serviço de Higiene Mental do Brasil.
Mas o que seria higiene mental? “Um trabalho de psiquiatria profilática de prevenção das doenças mentais. Pernambucano entendia a higiene mental como um campo interdisciplinar: um médico poderia ser um higienista mental tanto quanto um juiz, um sociólogo, um psicólogo, um antropólogo, porque havia uma ideia na época de que todo desviante social, no fundo, teria algum distúrbio psíquico, e o louco, por si só, já seria um desviante social. Para ele, a higiene mental seria o lugar onde essas ciências sentariam para dialogar e trocar experiencias”, diz o historiador, acrescentando que esse discurso foi usado “para articular e legitimar uma agenda de reformas que eram, a um só tempo, científicas e sociais”, escreve na dissertação.
Sem saúde, a educação fracassa; sem educação, a saúde fracassa
Segundo Vicentini, Pernambucano não via distinção clara entre Saúde e Educação. Como gestor, ele transitou pelas duas áreas. Dirigira duas escolas em Pernambuco: a Escola Normal de Recife e o Ginásio Pernambucano.
Havia um movimento educativo e sanitário, que se complementava. Para Pernambucano, sem saúde, a educação fracassa; e sem educação, a saúde fracassa. É uma perspectiva holística, bem integrada
“Na Escola Normal, ele desenvolveu um projeto de educação ligado à saúde. Dizia que se o aluno não estivesse bem alimentado, se não se conhecesse o perfil psicológico, não se levassem assistentes sociais para ir até a casa e ver as condições de higiene, de saúde, de alimentação, de transporte do estudante, a educação não funcionaria. Por outro lado, dizia que se as pessoas não fossem bem educadas para cuidar da sua saúde, ela também fracassaria”, conta o autor da dissertação.
O Serviço de Higiene Mental que Pernambucano criou na segunda reforma psiquiátrica foi, na verdade, uma expansão do serviço de assistência social que ele criara na Escola Normal. “A visitadora ia até a casa do paciente, passava instruções de como lidar como a pessoa, de como a família poderia se prevenir para não desenvolver distúrbios. Era um movimento educativo e sanitário, que se complementava. Para ele, sem saúde, a educação fracassa; e sem educação, a saúde fracassa. Uma perspectiva holística, bem integrada”, frisa Vicentini.
Em um projeto integrado, fechar os olhos para o que ocorria com adeptos das religiões negras e indígenas, consideradas pela comunidade médica brasileira causa e consequência de doenças mentais, parecia fora do lugar. Embora conjugasse da mesma opinião, Pernambucano adotou uma postura na contramão da repressão. Criou um projeto pioneiro, em que um grupo de estudantes de Medicina visitava os terreiros afro-brasileiros para desenvolver pesquisas no local. Como eram espaços proibidos, o psiquiatra, que ocupava alto cargo na administração pública, como responsável pela Assistência a Psicopatas, fez um acordo com a Secretaria de Segurança do Estado para que fossem poupados das batidas policiais.
Nos terreiros, exames psicológicos nos pais de santo
“Com os pais de santo, ele fazia um acordo para que eles abrissem as portas dos terreiros aos estudantes e se submetessem a exames psicológicos, psicotécnicos e psiquiátricos”, detalha o historiador, acrescentando que René Ribeiro, aluno de Pernambucano, chegou a participar desse movimento, em 1934. Ele também entendia o transe, a possessão, o fenômeno da mediunidade pela chave da doença psíquica, mental. Só mais adiante, em contato com o norte-americano Melville Herskovits, que orientou no mestrado em Antropologia, ele muda essa interpretação. “Quando você pega essa dissertação sobre os terreiros de Pernambuco, encontra uma visão totalmente positivada sobre as comunidades que se formam em torno dessa religião”, destaca o historiador.
O grupo de psiquiatras de Recife iniciou estudos pioneiros em diversos campos, como a religiosidade afro-brasileira, e buscou canais de diálogo com outros campos do saber, tais como a Sociologia, a Psicologia, o Serviço Social e a Antropologia
Por se aproximar de pais de santo e legalizar terreiros que estavam sob sua tutela para a realização de pesquisas, Pernambucano pagou um preço alto. Além de ter sido tachado de comunista, essa relação foi uma das razões que levou o psiquiatra à prisão. Ao assumir o governo de Pernambuco durante o Estado Novo, Agamenon Magalhães persegue o psiquiatra e volta com força total com a repressão aos terreiros, utilizando-se do mapeamento realizado pelo grupo do médico.
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Renato Vicentini autor da dissertação. Foto: Arquivo pessoal. |
“O combate àquilo que se entendia como sendo as causas sociais da loucura, fez com que um grupo de psiquiatras do Recife empreendesse uma série de pesquisas urbanas visando futuras transformações sociais. Assim, iniciaram estudos pioneiros em diversos campos, como a religiosidade afro-brasileira, bem como buscaram canais de diálogo com outros campos do saber, tais como a Sociologia, a Psicologia, o Serviço Social e a Antropologia”, escreve na dissertação.
Apesar das profundas transformações ocorridas na psiquiatria local, Pernambucano viu-se obrigado a abrir mão do seu grande projeto, a Divisão de Assistência a Psicopatas de Pernambuco. Como explica Vicentini, a crise que lá se instaurou tinha causas que extrapolavam o contexto médico. O psiquiatra se viu na berlinda ao ser questionado pelos altos custos de seu projeto reformista, em uma situação na qual o Estado carecia de verbas para se manter. Apesar de ter números apontando que o serviço, na verdade, era o mais barato do Brasil, a grita permanecia.
Em 8 de novembro, ele capitula: deixa o posto de diretor da Assistência a Psicopatas, a sua maior realização na administração pública e, antes do mês acabar, viveria o inferno ao ser acusado de conspirar contra a segurança nacional. Ele também desagradava poderosos do Estado, como os políticos que comandavam a agroindústria açucareira, irritados com as críticas que o psiquiatra fizera à saúde mental dos trabalhadores do setor.
Pernambucano, técnico do time da reforma psiquiátrica
Ao iniciar a pós-graduação na Casa, Vicentini nem tinha Pernambucano em mente. Por sugestão de seu orientador, o pesquisador Marcos Chor Maio, estava debruçado sobre outro psiquiatra pernambucano, René Ribeiro, que somara ao diploma de médico a carreira de antropólogo. “Quanto mais estudava o René Ribeiro, mas fui vendo como ele era um jogador de um time que tinha um técnico e outros jogadores. Aí fiquei fascinado por esse grupo, quis entender mais como ele funcionava e quem era esse técnico que formou esse time. Assim cheguei ao Ulysses Pernambucano”, relata o historiador.
Há 11 anos professor das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro, Vicentini não vislumbra, no momento, um doutorado. Divide a rotina entre as aulas para turmas de jovens e adultos na escola municipal Eurico Salles, no Engenho da Rainha, na Zona Norte do Rio, e a educação de detentos no presídio Bangu 6, na Zona Oeste da cidade. Também está produzindo artigos com base em sua dissertação, em parceria com seu orientador.
“Se você reparar, o cenário em que Pernambucano atuou é muito parecido com o nosso hoje, quando vivemos um estrangulamento das verbas na ciência, cortes de bolsas, perseguição política, acusações de ideologia comunista. Ele era um reformador, e foi parar na cadeia como comunista. Sofreu um ataque cardíaco por conta disso e teve a saúde profundamente debilitada. Durante o Estado Novo, foi considerado inimigo político e foi banido da vida pública. E o que a gente vê hoje se não uma acusação de comunismo para tudo que é lado?”, pergunta Vicentini.