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No mercado livreiro do Brasil oitocentista, capas ao gosto do leitor

Pesquisadora retrata a atividade de encadernação a partir da análise de milhares de anúncios e etiquetas de livros 

Karine Rodrigues

14 jun/2023

Não levou cinco meses para uma invenção anunciada pela França, a daguerreotipia, chegar ao Brasil, imortalizando o largo do Paço, no Rio de Janeiro, em 16 de janeiro de 1840. No mesmo ano, o suíço Georges Leuzinger (1813-1892) – que chegara ao Brasil sem falar uma palavra em português e mais adiante se transformaria em um dos mais importantes fotógrafos e difusores da fotografia sobre o Brasil – deu um passo que o tornaria memorável também em outro tipo de arte: comprou a mais antiga papelaria da então capital do Império e, depois, incorporou ao negócio uma tipografia e uma oficina de pautação e riscação. A iniciativa de trazer da Europa as primeiras máquinas do tipo não era pouca coisa em um período no qual comerciantes e repartições públicas só conseguiam adquirir os indispensáveis livros de escrituração, ou “livros em branco”, recorrendo à importação ou aos parcos exemplares estrangeiros comercializados no país.

Leuzinger desempenhou um importante papel na evolução da impressão no Brasil e formou novos quadros, que espalharam a arte da encadernação pelo país. Além disso, foi precursor da introdução dos cartões postais ilustrados no Brasil e na documentação do Rio de Janeiro. Os equipamentos do ateliê fotográfico que montou em 1865 viajaram por muitas cidades, assim como ele, autor de fotografias e editor de premiadas publicações na área. Ao fim do século, a Casa Leuzinger ganharia a fama de mais importante encadernadora do Brasil, conta Ana Roberta Tartaglia, chefe do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “Muitos dos cadernos de campo de Oswaldo Cruz têm etiquetas da Casa Leuzinger”, diz ela.

Em artigo na Ponto de Acesso, revista do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Ana Roberta retrata a atividade de encadernação no Brasil oitocentista, em especial, no Rio de Janeiro, a partir da pesquisa realizada em milhares de anúncios e etiquetas de livros, que, por sua vez, contam histórias de livrarias já inexistentes e mudanças no processo de comercialização do mercado livreiro. A publicação traz a reprodução de várias etiquetas, localizadas durante estudos sobre encadernações de coleções sob a responsabilidade da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), da Biblioteca de História das Ciências e da Saúde (BHCS) da Casa de Oswaldo Cruz e da Seção de Obras Raras A. Overmeer, da Biblioteca de Manguinhos, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (ICICT) Fiocruz.

“Hoje, por meio das marcas de procedência, podemos acompanhar os locais em que os negócios estiveram estabelecidos, os estilos gráficos através das décadas, o avanço da tecnologia, a modernização do comércio e dos meios de comunicação e das práticas comerciais”, escreve Ana Roberta, que é formada em Belas Artes, com especialização em Preservação de Acervos de Ciência e Tecnologia pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), e mestrado em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz.

Franceses e portugueses dominavam as atividades do mercado livreiro  

Os primeiros encadernadores teriam surgido no Brasil após a transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, com a fundação da Impressão Régia, responsável por reproduzir atos legislativos e de repartições, entre outros documentos, além do primeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro. Não era exclusividade da Casa Leuzinger reunir várias atividades relacionadas ao livro, como papelaria, livraria, tipografia e encadernação. Diante de um mercado ainda incipiente, até mesmo outros tipos de produtos, miudezas, como louça, fumo, chá, eram comercializados em mesmo endereço.

Pelo menos até 1860, o mercado livreiro local era dominado por estrangeiros, em especial, portugueses e franceses, diz a pesquisadora. Enquanto os primeiros ocuparam as ruas de comércio popular, como a rua dos Latoeiros, atual Gonçalves Dias, ou a rua do Sabão, já extinta, Baptista Louis Garnier e seus conterrâneos se instalaram na área mais elegante da cidade, com destaque para a rua do Ouvidor, endereço também de cafés e jornais. 

O vai e vem rotineiro nas livrarias da Ouvidor, espaços de convivência prediletos da intelectualidade do período, virou assunto de crônica. Em Livros e Livrarias, o jornalista Luiz Edmundo (1878-1961) conta, sobre a Garnier: “Vários são os grupos que na loja se formam, na hora de maior movimento, aí pelas 4, 5 e 6 da tarde. Há o grupo de Machado de Assis, com José Veríssimo, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Rui (às vezes), Constâncio Alves, Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Coelho Neto (às vezes), Medeiros e Albuquerque, Araripe Júnior, Rodrigo Otávio, Mário de Alencar e Clóvis Bevilaqua, são os grossões da Academia…”.

Imagem do rosto de uma mulher
Ana Roberta é chefe do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa

Segundo Ana Roberta, tipógrafos tiveram um importante papel na ampliação do mercado de leitores, inicialmente formado pelas elites e os eruditos. Interessados em aumentar a demanda, focando no livro como um instrumento de lazer ou para ampliar o conhecimento, o processo de confecção do livro adquiriu novas feições. E os textos passaram a ficar mais arejados, com a inclusão de imagens e detalhes gráficos. 

“As brochuras [tipo de encadernação onde normalmente o miolo é costurado ou colado direto em capa flexível], que aos poucos foram substituindo os livros cartonados ou de capa dura, e estão hoje completamente estabelecidas em nosso cotidiano, são exemplos de um tipo de encadernação construída inicialmente para a viabilização e barateamento do processo industrial”, explica ela “Em um acervo bibliográfico, nos deparamos com vários tipos de danos nos livros. Às vezes, ele está sem capa, ou com capa parcial. Comecei a estudar modelos de encadernação criados por encadernadores brasileiros e estrangeiros, alguns baseados até em encadernações medievais, para desenvolver capas flexíveis, mas com um material indicado para conservação”, detalha.

Livros de Rui Barbosa encadernados com couro de vitela 

À época, os livros não eram vendidos sempre encadernados. “Existiam vários tipos de produto para ofertar. O livro poderia ser vendido também em cadernos soltos ou então brochurado, com uma costura provisória, para o dono do livro mandar encaderná-lo do seu jeito. As pessoas gostavam de ter uma biblioteca igual, com as encadernações padronizadas”, diz Ana Roberta, que, por dois anos, mergulhou na biblioteca de Rui Barbosa (1849-1923), para uma pesquisa financiada pela Fundação Casa de Rui Barbosa.

Segundo conta, todos os livros que o jurista, político e jornalista mandava encadernar com seu livreiro favorito, o francês Briguiet, tinham um tipo de couro vitela, amarelo claro, e um marmorizado específico, em tons de marrom e ocre. “Com a pesquisa, busquei identificar quais as encadernações, dentro daquele mundo de 37 mil livros da biblioteca dele, eram brasileiras. Marcas dos livros, etiquetas de livreiros, carimbos, tudo isso foi alvo da minha pesquisa”, relata.

As etiquetas afixadas nos livros eram as marcas de procedência mais comuns da época. Traziam informações sobre a origem da publicação, assim como carimbos – seco ou úmido – e dourações em partes da capa, como a lombada, parte do livro que tem como função manter as folhas sempre unidas. Os estilos das etiquetas eram variados, mas havia características semelhantes como o formato em geral retangular, cercaduras, texto composto em preto e diferentes fontes tipográficas. Geralmente, não traziam ilustrações, mas quando presentes, os motivos mais comuns eram um livro aberto ou fechado, cintos, guirlandas e laços de fitas.

Inovação e história nas pequenas e variadas marcas de procedência 

No estudo, Ana Roberta chama atenção para especificidades adotadas pelos donos dos estabelecimentos. Agostinho de Freitas Guimarães, por exemplo, foi o primeiro livreiro a adotar a expressão “mercador de livros” em suas etiquetas. Para marcar a origem de suas publicações, comercializadas na rua do Sabão, número 26, ele fugia um pouco do formato usualmente retangular, de 5 x 3 centímetros ou 7 x 4 centímetros. Preferia tê-las mais alongadas, com 6 x 2 centímetros.

a Livraria Universal, fundada pelo alemão Eduardo Laemmert, destacava-se pela grande variedade de tipos. Ao longo da existência do estabelecimento, foram mais de 50 modelos, “variando os dizeres, formatos, as cores, utilizando papéis especiais e até metalizados”. Como nem todos os livreiros especificavam em seus anúncios ou em suas marcas de procedência a atividade de encadernação, a existência de expressões como “venda de livros em branco” ou “livros para escrituração” – volumes usados como livros fiscais – indicava que, ali, desenvolvia-se o ofício de encadernador.

Ana Roberta analisou uma das fontes mais usadas para anúncios de produtos e serviços do século 19, o Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, ou, resumidamente, o Almanack Laemmert, que tinha uma quantidade de páginas tão grande quanto o próprio nome: sabe-se de edições com mais de duas mil páginas. A coleção está disponível na Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.

Mudanças constantes impactavam no uso de etiquetas  

No período entre 1844 e 1900, a pesquisadora identificou na publicação 1.174 anúncios do mercado livreiro, localizando neles 209 encadernadores, com uma média de anúncios anual de 23 profissionais, com pico de 35 em 1875. No momento da consulta, na coleção digitalizada da Biblioteca Nacional, não havia dados disponíveis para os anos de 1867 e 1890. Entre os anunciantes mais assíduos da seção Encadernadores do Almanack Laemmert, figuram três dos grandes negociantes de livros do período: Leuzinger, Lombaerts e o próprio Laemmert, que abrira a Livraria Universal, um estabelecimento luxuoso, onde também eram comercializados artigos franceses, como chocolates, pastilhas e água mineral, conta Ubiratan Machado, em Pequeno Guia Histórico das Livrarias Brasileiras.

Ana Roberta cita três razões que podem explicar a baixa incidência de etiquetas de encadernadores em livros do período: a mudança constante de endereço; as renumerações ou extinções de endereços, em razão das grandes transformações em curso em um Rio de Janeiro em crescimento; e, por fim, o constante ata e desata das sociedades firmadas entre profissionais do ramo. 

“São raras as etiquetas exclusivas de encadernadores. A maioria é de livrarias apontando os outros serviços oferecidos. Acredito que nem todos os encadernadores faziam etiquetas porque elas duravam mais que um anúncio no Laemmert, por exemplo, que valia por um ano. Já o tempo de duração de uma etiqueta é o mesmo que o seu suporte, ou seja, a capa do livro, podendo existir por até uma  centenade anos, como os casos que pesquisei. E, às vezes, os negócios se dissolviam mais rápido, principalmente em se tratando de sociedades entre profissionais”, detalha Ana Roberta. O caso de Audouin ilustra bem essa situação: anunciante por três décadas, ele aparece em quatro endereços diferentes ao longo do tempo, e também fez vários acréscimos ao nome: “Audouin – Ao Livro Verde”, em 1852; “Audouin & C.”, em 1871; e “Carlos Audouin”, em 1874.

A introdução do telefone também produziu alterações na divulgação. “A primeira firma a anunciar no Almanack Laemmert esta novidade foi Moreira, Maximino & C., no ano de 1882: ‘Communicação telephonica nº 30’”, escreve a pesquisadora, que passou a se interessar pelo tema da encadernação durante a graduação, quando produzia cadernos de desenho comercializados entre os demais alunos.  A intenção de Ana Roberta agora é não apenas aplicar os resultados de suas pesquisas no acervo da BHCS quanto divulgar a encadernação por meio de cursos e oficinas, como o que está previsto para o segundo semestre deste ano na Oficina Escola de Manguinhos, da Fiocruz.