Priscila, ao lado de Robert Wegner, coordenador do evento: houve um colapso no sistema de assistência à saúde em Portugal no século 15. Foto: Vinicius Pequeno. |
Hospitais com quatro ou cinco leitos, construídos para atender indistintamente doentes, pobres e peregrinos, com o objetivo maior de salvar as almas de seus patrocinadores dos pecados. Esse era o cenário em Portugal no século 15, quando o rei Dom João II, conhecido como o Príncipe Perfeito, iniciou um processo que levaria o país a consolidar um sistema de assistência à saúde moderno no fim da Idade Média. Esse processo foi o tema da tese de doutorado de Priscila Aquino, debatido no Encontro às Quintas do dia 24 de maio.
João II teve um papel marcante na história de Portugal: foi responsável por levar a cabo a centralização política do reino, numa época em que o poder estava pulverizado nas mãos de senhores feudais. Diante da resistência, o soberano sufocou as vozes opositoras, destacou Priscila: ele assassinou a facadas o Duque de Vizeu, irmão de sua mulher, e mandou enforcar o Duque de Bragança. Num momento de crescimento populacional, empobrecimento e aumento do fluxo migratório, esse movimento de centralização também se deu no campo da assistência.
“Com o crescimento populacional em fins da Idade Média e as migrações que fizeram com que as cidades se expandissem, as casas assistenciais não deram conta de atender os doentes e os pobres que chegavam. Há um verdadeiro colapso das instituições de assistência”, explicou Priscila. Nesse período, o cargo de administrador era muito cobiçado, uma vez que diversas dessas casas detinham muitos recursos, provenientes de doações feitas em testamentos. “Hospitais eram geridos por provedores pouco hábeis ou corruptos e aproveitadores”, disse.
O tema surgiu para a pesquisadora a partir de sua dissertação de mestrado, que abordou a imagem real. Em seus estudos, Priscila descobriu que a imagem heráldica do rei – um pelicano – era utilizada em diversas de suas obras, especialmente nas casas de assistência. O pássaro tinha um significado político profundo. No imaginário medieval, a ave bicava o próprio peito para dar o sangue como alimento para seus próprios filhotes. O pelicano representava sacrifício e tinha caráter messiânico: era associado à Jesus Cristo no momento da crucificação. Para desenvolver o tema, ela mergulhou em crônicas, cartas régias e outros documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa.
Heráldica real inspirou Priscila a pesquisar instituições de saúde. Na imagem, Frontispício da Regra e Statos da Ordem de Santiago, localizado no setor de obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio. |
Priscila afirmou, com base nas poucas descrições da época, que os hospitais medievais eram pequenos, desconfortáveis e “sem condições mínimas desejáveis”. A função do hospital era servir aos doentes que passavam por ali por poucos dias. Não cumpriam função de cura, mas de acolhimento. É nesse contexto que se dá uma intensa remodelação na assistência, que se expressa na construção do Hospital das Caldas da Rainha e do Hospital de Todos os Santos, de Lisboa, objetos de estudo de Priscila.
Salvação da alma
Embora os primeiros hospitais criados por Dom João II e sua mulher, a rainha Dona Leonor, representassem o embrião de um sistema moderno de saúde, essas instituições continuaram marcadas pela presença extensiva da fé cristã, uma característica da Idade Média. “Vimos no compromisso (das instituições) recomendação de missas e orações tanto para a alma de D. João II quanto para a alma de Dona Leonor e filho, D. Afonso (…) Trata-se uma instituição que está sendo construída com aquele pensamento de salvar a alma, de fazer orações para o rei. Todos esses hospitais tem capelas dentro deles ou muito próximas”, diz a pesquisadora.
Entre os profissionais que trabalhavam nos hospitais, de acordo com documentos consultados por Priscila, estavam os físicos (médicos), cirurgiões, boticários e cozinheiros. A pesquisadora relatou uma das atividades dos boticários, a realização de mesinhas, como era denominadas a produção de remédios na época. “Uma das mesinhas mais famosas para tratar a peste era feita com sangue do texugo. Eles matavam o animal e o sangue era misturado em ervas aromáticas. Seus ossos e sua pele eram amassados e misturados em vinho ou em água e era dado para o doente beber”, contou.
Segundo a pesquisadora, pela primeira vez na história do reino ibérico, vê-se um povoamento ser feito em torno de um hospital. Para viabilizar a construção do Hospital das Caldas da Rainha, o rei concedeu isenção de impostos para quem fosse morar no seu entorno e deu liberdade para que homiziados – como eram chamados os criminosos – fossem viver lá. Diferentemente dos hospitais que existiam antes, esses dois criados por João II tinham dimensões maiores: o Real de Todos os Santos possuía 200 leitos e o das Caldas da Rainha, 100.
Em um movimento análogo ao que fez com o poder político – concentrando-o na sua figura e não mais disperso nas mãos da nobreza feudal -, Dom João II centraliza o sistema de assistência em torno de si e dota Portugal de instituições mais próximas aos hospitais que existem hoje, com capacidade para atender um número grande de doentes. Embora tenha tido caráter laico – submetido ao Reino e não à Igreja -, esse novo sistema seguiu carregando um forte viés cristão, expresso no projeto arquitetônico dos hospitais, construídos em forma de cruz, e na disposição dos leitos, voltados para o altar-mor.