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O Príncipe Perfeito e os primeiros hospitais modernos de Portugal

28 maio/2013

Priscila sentada ao lado de Robert Wegner, coordenador do evento
Priscila, ao lado de Robert Wegner, coordenador do evento: houve um colapso no sistema de
assistência à saúde em Portugal no século 15. Foto: Vinicius Pequeno.

Hospitais com quatro ou cinco leitos, construídos para atender indistintamente doentes, pobres e peregrinos, com o objetivo maior de salvar as almas de seus patrocinadores dos pecados. Esse era o cenário em Portugal no século 15, quando o rei Dom João II, conhecido como o Príncipe Perfeito, iniciou um processo que levaria o país a consolidar um sistema de assistência à saúde moderno no fim da Idade Média. Esse processo foi o tema da tese de doutorado de Priscila Aquino, debatido no Encontro às Quintas do dia 24 de maio.

João II teve um papel marcante na história de Portugal: foi responsável por levar a cabo a centralização política do reino, numa época em que o poder estava pulverizado nas mãos de senhores feudais. Diante da resistência, o soberano sufocou as vozes opositoras, destacou Priscila: ele assassinou a facadas o Duque de Vizeu, irmão de sua mulher, e mandou enforcar o Duque de Bragança. Num momento de crescimento populacional, empobrecimento e aumento do fluxo migratório, esse movimento de centralização também se deu no campo da assistência.

“Com o crescimento populacional em fins da Idade Média e as migrações que fizeram com que as cidades se expandissem, as casas assistenciais não deram conta de atender os doentes e os pobres que chegavam. Há um verdadeiro colapso das instituições de assistência”, explicou Priscila. Nesse período, o cargo de administrador era muito cobiçado, uma vez que diversas dessas casas detinham muitos recursos, provenientes de doações feitas em testamentos. “Hospitais eram geridos por provedores pouco hábeis ou corruptos e aproveitadores”, disse.

O tema surgiu para a pesquisadora a partir de sua dissertação de mestrado, que abordou a imagem real. Em seus estudos, Priscila descobriu que a imagem heráldica do rei – um pelicano – era utilizada em diversas de suas obras, especialmente nas casas de assistência. O pássaro tinha um significado político profundo. No imaginário medieval, a ave bicava o próprio peito para dar o sangue como alimento para seus próprios filhotes. O pelicano representava sacrifício e tinha caráter messiânico: era associado à Jesus Cristo no momento da crucificação. Para desenvolver o tema, ela mergulhou em crônicas, cartas régias e outros documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa.

Frontispício da Regra e Statos da Ordem de Santiago, localizado no setor de obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio
Heráldica real inspirou Priscila a pesquisar instituições de saúde. Na imagem,
Frontispício da Regra e Statos da Ordem de Santiago, localizado no setor de
obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio.

Priscila afirmou, com base nas poucas descrições da época, que os hospitais medievais eram pequenos, desconfortáveis e “sem condições mínimas desejáveis”. A função do hospital era servir aos doentes que passavam por ali por poucos dias. Não cumpriam função de cura, mas de acolhimento. É nesse contexto que se dá uma intensa remodelação na assistência, que se expressa na construção do Hospital das Caldas da Rainha e do Hospital de Todos os Santos, de Lisboa, objetos de estudo de Priscila.

Salvação da alma

Embora os primeiros hospitais criados por Dom João II e sua mulher, a rainha Dona Leonor, representassem o embrião de um sistema moderno de saúde, essas instituições continuaram marcadas pela presença extensiva da fé cristã, uma característica da Idade Média. “Vimos no compromisso (das instituições) recomendação de missas e orações tanto para a alma de D. João II quanto para a alma de Dona Leonor e filho, D. Afonso (…) Trata-se uma instituição que está sendo construída com aquele pensamento de salvar a alma, de fazer orações para o rei. Todos esses hospitais tem capelas dentro deles ou muito próximas”, diz a pesquisadora.

Entre os profissionais que trabalhavam nos hospitais, de acordo com documentos consultados por Priscila, estavam os físicos (médicos), cirurgiões, boticários e cozinheiros. A pesquisadora relatou uma das atividades dos boticários, a realização de mesinhas, como era denominadas a produção de remédios na época. “Uma das mesinhas mais famosas para tratar a peste era feita com sangue do texugo. Eles matavam o animal e o sangue era misturado em ervas aromáticas. Seus ossos e sua pele eram amassados e misturados em vinho ou em água e era dado para o doente beber”, contou.

Segundo a pesquisadora, pela primeira vez na história do reino ibérico, vê-se um povoamento ser feito em torno de um hospital. Para viabilizar a construção do Hospital das Caldas da Rainha, o rei concedeu isenção de impostos para quem fosse morar no seu entorno e deu liberdade para que homiziados – como eram chamados os criminosos – fossem viver lá. Diferentemente dos hospitais que existiam antes, esses dois criados por João II tinham dimensões maiores: o Real de Todos os Santos possuía 200 leitos e o das Caldas da Rainha, 100.

Em um movimento análogo ao que fez com o poder político – concentrando-o na sua figura e não mais disperso nas mãos da nobreza feudal -, Dom João II centraliza o sistema de assistência em torno de si e dota Portugal de instituições mais próximas aos hospitais que existem hoje, com capacidade para atender um número grande de doentes. Embora tenha tido caráter laico – submetido ao Reino e não à Igreja -, esse novo sistema seguiu carregando um forte viés cristão, expresso no projeto arquitetônico dos hospitais, construídos em forma de cruz, e na disposição dos leitos, voltados para o altar-mor.