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Dificuldades estimularam criatividade de colonizadores, diz pesquisador

20 mar/2018

 

Foto de Julianna Morcelli e Christian Fausto
Historiadores Julianna Morcelli e Christian Fausto. Foto: arquivo particular

Os colonizadores europeus que atracaram suas caravelas na América portuguesa enfrentaram grandes desafios, especialmente, em sua busca por fontes seguras de alimentos. Essa necessidade deixou um legado à cultura culinária brasileira, afirma o historiador e pesquisador Christian Fausto Moraes dos Santos. O tema é abordado no artigo “Saborosos, sadios e digestivos: o discurso médico presente no consumo de frutos, conservas e compotas na América portuguesa do século XVI”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC)/Fiocruz. Christian assina o artigo com a também pesquisadora Julianna Morcelli Oliveros. Segundo o estudo, os frutos encontrados no Brasil assumiram um papel importante na dieta alimentar dos colonizadores; eram consumidos em forma de compotas e conservas.

Os doces e compotas continham grandes quantidades de açúcar, produto que era usado também com finalidade terapêutica na época da colonização, conta o historiador da Universidade de Maringá (PR).  “As técnicas de conservação dos alimentos se limitava ao uso de defumação, ácido acético (vinagre), sal e açúcar”, explicou.

Para Christian Fausto, os colonizadores tiveram outros aliados para garantir sua sobrevivência: os indígenas. O estudo constatou que os nativos ajudaram, “em grande parte graças ao saber enciclopédico sobre a flora da América portuguesa”. Desta forma, complementa, os colonizadores “não somente sobreviveram a um ambiente desconhecido e inóspito, como elaboraram uma cultura alimentar única e extremamente dinâmica.”

Com doutorado pelo Programa de Pós-Graduação na Casa de Oswaldo Cruz (COC)/Fiocruz, o pesquisador destacou a sobrevivência do europeu no processo de colonização. “Para além daquelas plantas com um valor mercantil considerável (como foi o caso das orientais pimenta do reino, cravo, canela e noz moscada), muitas outras plantas acabaram se destacando por possuir um valor que, em nossa perspectiva, poderia superar o das famosas especiarias da Índias orientais”, avaliou. Leia a entrevista com um dos autores do artigo publicado pela revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Christian Fausto Moraes dos Santos.

Podemos dizer que houve um legado para nossa cultura por parte do colonizador, ao preparar e consumir determinados alimentos?

O fascinante de se estudar os primeiros relatos, crônicas e tratados feitos pelos colonizadores europeus, na América portuguesa, reside principalmente nisso, ou seja, ter a chance de observar e analisar a construção de saberes e práticas que acabaram se tornando basilares na cultura brasileira. O consumo de determinados alimentos, ou a maneira de prepará-los, pode ser incluído neste legado. No artigo discutimos muito sobre doces e compotas e como os mesmos eram feitos com uma quantidade razoável de açúcar. Claro, estamos nos referindo a um período em que as técnicas de conservação dos alimentos se limitava ao uso de defumação, ácido acético (vinagre), sal e açúcar. Logo, quantidades generosas de açúcar deveriam ser utilizadas se os colonizadores quisessem que suas compotas e conservas durassem meses em um ambiente quente e, por vezes, úmido. Havia também os paradigmas médicos da época, que estimulavam o uso do açúcar. Este, considerado uma droga com muitas finalidades terapêuticas. Séculos se passaram e as compotas e doces feitos com frutos genuinamente brasileiros seguem muitos dos princípios que foram se constituindo nos primeiros decênios da colonização: o uso de quantidades generosas de açúcar. Para além do volume de açúcar nas receitas, visando garantir o processo de conservação, o consumo destes doces sempre foi uma fonte de prazer e um importante reforço no cardápio do brasileiro. Principalmente para aquela parcela da população que sempre teve uma rotina de trabalho desgastante. Afinal, os doces também são uma rica fonte de calorias.

Podemos dizer que foram vários os legados deixados pelos primeiros doces feitos na colônia. Encerrados em uma pequena compota feita com algum fruto de nossas florestas podemos encontrar claros traços de um legado cultural, estratégico, nutricional, econômico e mesmo médico.

Quais lições podemos tirar desse aprendizado a que foram submetidos os colonizadores?

O ambiente não determina a História. Mas ele, certamente, é um ator que deve ter sua atuação devidamente considerada pelo historiador. Muitas vezes, enquanto pesquisamos no conforto de nossas escrivaninhas e no ar condicionado de nossos escritórios, bibliotecas e laboratórios, nos esquecemos de levar em consideração todos os percalços que poderiam envolver algo tão cotidiano quanto a busca ou a conservação dos alimentos. Os colonizadores, em grande parte graças ao saber enciclopédico dos indígenas sobre a flora da América portuguesa, não somente sobreviveram a um ambiente desconhecido e inóspito, como elaboraram uma cultura alimentar única e extremamente dinâmica. Cultura esta que, em boa medida, subsiste até hoje nos doces caseiros vendidos em “secos e molhados” ou nas compotas que, invariavelmente, associamos a uma herança culinária rural e interiorana. Custo reduzido, prazer gustativo, cultura gastronômica, fonte de energia. A história de nossos doces nos permite observar que os incontáveis obstáculos impostos pelo ambiente colonial, longe de serem determinantes, estimularam a meticulosidade, observação, criatividade e engenho dos colonizadores.

É possível dizer que esse contato com nossos alimentos (frutas, especialmente, mas outros ingredientes nativos) gerou circulação de conhecimento sobre o tema alimentação na Europa?

A era moderna, e a consequente expansão europeia, promoveu uma dinâmica alimentar sem precedentes. De fato, é impossível pensar a era das grandes navegações sem um dos principais fatores que desencadeou sua dinâmica, ou seja, as desejadas raízes, sementes, folhas, galhos, resinas e frutos encontrados nos novos domínios ultramarinos. Para além daquelas plantas com um valor mercantil considerável (como foi o caso das orientais pimenta do reino, cravo, canela e noz moscada), muitas outras plantas acabaram se destacando por possuir um valor que, em nossa perspectiva, poderia superar o das famosas especiarias da Índias orientais. Estamos nos referindo aqui ao valor da sobrevivência. Não devem ter sido raras as vezes em que algumas raízes de mandioca ou uma compota de abacaxi significaram a diferença entre a vida e a morte de uma tripulação que trazia os porões de suas naus abarrotadas de especiarias do oriente. E, claro, o prazer, este sentimento sempre associado ao ato de se alimentar, também foi um dos grandes motivadores para que as cozinhas típicas do Velho Mundo nunca fossem as mesmas. Afinal, como imaginar a culinária italiana sem o tomate, a inglesa sem batata ou a francesa sem a abobrinha? O impacto que as plantas do continente americano tiveram sobre o ato de se alimentar, nas mais diferentes culturas do mundo é um prato cheio para nós, historiadores da alimentação.

Pode nos explicar o termo saudade gustativa?

O paladar humano, assim como a cultura, é resultado de um processo de herança e modificação. Boa parte de nosso paladar é desenvolvida a partir da comida que é preparada pelos nossos pais, pelos nossos avós, ou seja, nosso local de origem, as plantas que compõem a flora local e a maneira de prepará-las compõem muito daquilo que estará entre nossas preferências alimentares.  Um exemplo simples desta identidade gustativa pode ser encontrado no fato de que o brasileiro é o único consumidor de abacate, no mundo, que adiciona açúcar ao mesmo como complemento (enquanto, praticamente, todas as outas culturas adicionam sal). Quando nos deslocamos, seja em uma viagem ou em um processo migratório, levamos conosco essa bagagem sensorial e cultural. No caso de um processo colonizatório, como aquele que assistimos na América portuguesa a partir do século XVI, assistimos àquilo que poderíamos chamar de “saudade gustativa”. Ela pode estar presente, por exemplo, no hábito de comer doces em conserva após as refeições. Algo muito presente na cultura portuguesa. Ora, na ausência de um bom doce de figo em calda, tal saudade poderia ser parcialmente sanada com o consumo de doces em calda feitos com frutos nativos de nossa flora. Identificar esta saudade gustativa é importante, pois ela nos mostra que a tão difundida plasticidade do colonizador português até poderia estar presente em muitos ingredientes nativos mas ela acabava onde começava a saudade e a vontade de manter velhos hábitos trazidos da Metrópole.