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Por que a história das doenças deve dar mais atenção à interação com não humanos?

Estudo de pesquisador da Casa analisa como a pandemia de Covid-19 e o Antropoceno desafiam a escrita histórica

Karine Rodrigues

11 jul/2024

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Quais as conexões entre a pandemia de Covid-19 e o debate sobre o colapso ecológico que caracteriza o Antropoceno, conceito usado por parte da comunidade científica para descrever a época geológica em vigor, marcada pelo papel humano nas mudanças climáticas?  

Essa reflexão mobiliza o historiador André Felipe Cândido da Silva, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), desde os primeiros momentos da crise sanitária, quando, com o então pesquisador de pós-doutorado Gabriel Lopes, escreveu artigo sobre o tema, em abril de 2020, cerca de um mês após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter declarado a disseminação global do novo coronavírus.  

Em novo estudo, baseado em sua conferência na abertura do 5º Congresso Luso-Brasileiro de História da Medicina Tropical, organizado, no ano passado, pela Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, André Felipe examina como o novo coronavírus e o Antropoceno desafiam a escrita histórica – especificamente, a história das doenças: 

“Concentro-me na compreensão da Covid-19 como parte de uma crise multifacetada entrelaçada com a perda de biodiversidade e crises de alterações climáticas. Esta crise sobreposta é uma das principais razões pelas quais vários autores se referiram à Covid-19 como a doença do Antropoceno”, escreve no texto publicado nos Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT).  

Pandemia de Covid-19, um ensaio do que está por vir 

A relação entre a Covid-19 e o Antropoceno ganhou força com a alegada origem zoonótica da doença – segundo a qual o vírus teria passado do morcego para um mamífero intermediário e, depois, para o ser humano – e as transformações no Sistema Terra causadas por atividades socioeconômicas, como a ocupação de áreas florestais por atividades agropecuárias, o comércio ilegal de animais silvestres e a mineração.  

“Em vez de um episódio extraordinário, a pandemia do coronavírus foi vista como uma consequência da desestabilização acelerada dos ecossistemas impulsionada pelo capitalismo global. Assim, a Covid-19 figura como parte de uma sequência de pandemias zoonóticas que se tornaram cada vez mais frequentes nas últimas décadas, mas também têm sido consideradas um prenúncio de muitas pandemias futuras devido à instabilidade ecológica inerente que caracteriza o Antropoceno”, acrescenta o professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz. 

Diante desse contexto, a maneira como se analisa a saúde também adquire novos contornos, pois não se trata mais de pensar a saúde humana de forma isolada, mas em conexão com a saúde dos ecossistemas, como define o conceito “saúde planetária”, por meio do qual se abarca a totalidade das espécies da biosfera:  

Segundo André Felipe, a emergência do termo planetário é uma ruptura filosófica, na linha do que diz o historiador indiano Dipesh Chakrabarty: “É a emergência do planeta como ator, que tem agência e passa a atuar em sinergia com a agência humana. Isso é disruptivo porque nós nunca pensamos com o planeta”, observa ele, acrescentando que outra mudança diz respeito à divisão entre história humana e história natural, considerada não-humana, relegada ao domínio da natureza. “Essas fronteiras se borram completamente. As duas histórias se tornam uma só“. 

“Necessitamos de enquadramentos históricos mais atentos aos entrelaçamentos multiespécies” 

No artigo publicado nos Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, o historiador propõe os estudos multiespécies como uma abordagem oportuna para se entender a relação entre saúde e doença dentro desse novo contexto pós-Covid-19 e de emergência do Antropoceno.  

“Necessitamos de enquadramentos históricos mais atentos aos entrelaçamentos multiespécies”, avalia ele, que, recentemente, voltou de uma temporada na Alemanha, onde desenvolveu estudos relacionados ao projeto de pesquisa A Amazônia como microcosmo do Antropoceno: a história das pesquisas transnacionais em ecologia amazônica e os impactos ambientais da Grande Aceleração (1952-2002), no qual busca compreender o lugar da região na emergência dos conhecimentos que culminam no Antropoceno. 

Devemos é nos municiar de instrumentos para buscar mitigar os efeitos do Antropoceno. Fico muito preocupado que isso instile um sentimento de paralisia, apatia ou um tipo de fatalismo, sabe? Acho muito perigoso, inclusive do ponto de vista político

André Felipe Cândido da Silva

Pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz

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Os estudos multiespécies apresentam um grande dinamismo nos campos da etnografia, da antropologia das doenças e da literatura, mas ainda está dando os primeiros passos entre os historiadores, relata André Felipe, que considera essa abordagem “um convite a uma nova maneira de lidar com as fontes e de narrar a história”. Além disso, representam um eixo que tem contribuído para reestruturar as humanidades em torno do desafio ecológico – no Centro Rachel Carson de Ambiente e Sociedade, instituição em Munique onde esteve recentemente, observa, as humanidades ambientais figuram como área do conhecimento que reúne a história ambiental ao lado de outros campos das humanidades nos debates sobre os desafios ecológicos contemporâneos. 

O pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz considera, porém, que há muitas dúvidas sobre como operacionalizar os estudos multiespécies na análise histórica. “Acho que é um movimento em curso que tende a se ampliar, mas existem barreiras, inclusive de ordem disciplinar. Há muita resistência para trabalhar numa perspectiva que dialogue muito próximo com a biologia”. 

Apesar das dificuldades, André Felipe lembra que a história já advogou essa necessidade de trazer outros atores à tona. Por exemplo, as mulheres. “Diziam assim: ‘Mas onde encontrar as mulheres, visto que as fontes são produzidas pelos homens?’; ‘Não, se você olhar ali, nas brechas, vai encontrar as mulheres’. Então, é um movimento muito mais difícil, mas é possível. É uma questão de se incluir um ator e de procurar por esses indícios”, opina, sem desmerecer as dificuldades metodológicas.  

“Nós, historiadores, somos muito sensíveis à questão do tempo, da temporalidade do conhecimento. Para você fazer esse tipo de estudo, não pode se aferrar tão dogmaticamente a esse princípio. Porque, às vezes, você vai ter que utilizar conhecimentos atuais para poder compreender contextos passados e pedir isso para alguns historiadores mais radicalmente historicistas é um crime, né? É um anacronismo. No entanto, há estudos brilhantes que adotam esse, digamos, anacronismo consciente”. 

André Felipe cita como o exemplo a paleogenética, uma ferramenta atual que foi usada para rever as interpretações sobre a peste negra na Europa a partir dos dados dos anéis das árvores e da composição do pólen. “Há uma série de ferramentas que nos permitem ampliar o quadro de compreensão histórica. Obviamente, estamos lidando com o conhecimento atual, que têm seus limites, que é construída social, cultural e politicamente. Então, precisamos ter esse cuidado”.  

Na medicina tropical, um olhar para os entrelaçamentos entre diversas espécies 

No artigo, o pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz enfatiza também que há abordagens nas tradições historiográficas muito próximas dos estudos multiespécies. Por exemplo, na história da medicina tropical, que ele considera ser adequada para enfrentar alguns dos desafios da escrita da história das doenças no Antropoceno:  

“Historiadores da medicina tropical observaram extensivamente como médicos treinados nessa especialidade eram receptivos à abordagem ecológica na compreensão e controle das então chamadas ‘doenças tropicais’. Essas doenças envolviam ciclos de vida parasitários complexos que entrelaçavam humanos, não humanos e ecologias locais, exigindo uma compreensão de processos biológicos mais amplos”. 

Por fim, André Felipe chama atenção para uma atitude que se contraponha à normalização diante do estado permanente de instabilidade ecossistêmica, signo do Antropoceno: 

“Devemos é nos municiar de instrumentos para buscar mitigar esses efeitos. Fico muito preocupado que isso instile um sentimento de paralisia, apatia ou um tipo de fatalismo, sabe? Acho muito perigoso, inclusive do ponto de vista político. Se a Covid-19 foi tão dramática e caótica e se ela é o sinal de transformações mais amplas e corriqueiras, precisamos tentar remediar isso da melhor forma possível”.