Foto: Bruno Figueiredo. |
Por César Guerra Chevrand
Em um processo marcado pela ascensão de artistas como Emicida e Criolo, o rap vem ampliando sua circulação e incorporando novas temáticas e públicos, que vão muito além das suas fronteiras originais. Esse novo lugar social do rap é tema de estudos da socióloga Daniela Vieira dos Santos. Professora adjunta de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Daniela destaca que as mudanças em curso desde 2010 foram influenciadas tanto pela internet e pelas novas tecnologias quanto pelo contexto social, político e econômico da chamada Era Lula.
Autora do artigo Sonho brasileiro: Emicida e o novo lugar social do rap, entre outros, Daniela Vieira dos Santos foi a convidada do Encontro às Quintas realizado pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) remotamente no dia 22 de junho. A atividade é promovida pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa. Confira abaixo entrevista exclusiva com a socióloga.
Qual é o lugar social do rap em São Paulo e no Brasil em 2021?
|
Daniela Vieira dos Santos, socióloga. |
É difícil avaliar especificamente o lugar social do rap em 2021, uma vez que o começo da mudança do seu status social e da sua legitimidade é um processo que data mais ou menos de 2010, com os hits de Criolo e Emicida, por exemplo. Portanto, as muitas implicações desse gênero musical afro-diaspórico em 2021 advêm desse processo anterior que, a meu ver, pode ser avaliado de inúmeras formas e eu vou pontuar duas. Primeiro, a percepção de que a música rap e especialmente os grupos e artistas de São Paulo passaram a impactar não apenas os seus pares da periferia, mas dialogam com um público branco de classe média. Isso é elucidativo de maior circulação do rap e, igualmente, do aumento da sua legitimidade na medida em que muitos rappers investem fortemente no “discurso da periferia” como forma de garantia de autenticidade do produto. Um outro aspecto importante encontra-se na maior diversificação das temáticas (rap indígena, rap queer, rap gospel). Independente ou não dessas mudanças serem vistas com bons olhos aos integrantes da “velha escola”, isso demonstra que o rap enquanto forma musical aponta para uma maior amplitude e circulação do que nos 1990. Isso possibilita aos rappers do mainstream serem ouvidos não apenas como “vozes da periferia”, mas como intelectuais públicos cuja comunicação não está restrita apenas ao seu grupo social. Acho que nesse contexto pandêmico as declarações de muitos rappers a um público diverso deixam isso evidente.
Como o gênero evoluiu desde os seus pioneiros nos anos 1980?
Eu não tendo a pensar as mudanças do gênero em termos de “evolução”, mas busco compreender as dinâmicas sociais, as contradições e as ambiguidades que os raps tanto ressaltam quanto ajudam a construir. E uma das coisas pelas quais podemos entender determinadas diferenças com relação ao rap dos anos 1990, por exemplo, encontra-se na relação do gênero/movimento com os meios de comunicação e também na própria forma artística do rap. O desenvolvimento da tecnologia impactou substancialmente os meios de produção e circulação do rap.
Como as novas tecnologias contribuíram para a profissionalização e a popularização do rap?
As novas tecnologias – o desenvolvimento das redes sociais etc – trouxe a possibilidade de uma maior “independência” com relação às gravadoras; isso não se restringe ao mundo do rap. A trajetória do Emicida e a criação da LAB Fantasma é um bom exemplo para entender esse processo, especialmente, no rap. Mas é importante reconhecer que a relação do rap brasileiro com a indústria fonográfica nunca foi de parceria, digamos assim. Um rapper ou outro chegou a gravar com majors. No que se refere à circulação, nos anos 1990 destacavam-se o programa Yo MTV e algumas poucas rádios. Nas comunidades, as rádios piratas cumpriam esse papel. Já nos anos 2000 a internet potencializa a possibilidade de divulgação do trabalho do artista e, também, traz a oportunidade de ele se tornar o seu próprio “boss”. Isso vem acompanhado de uma ética de carreira bastante diferenciada. É relevante ressaltar isso porque quando sublinho o impacto da internet na reconfiguração do rap brasileiro – diagnóstico já apontado por outros autores – eu tendo a tomar cuidado para não colocar a tecnologia como determinante das mudanças. É claro que as novas tecnologias e sobretudo a internet trouxeram consequências tanto para o modo de se fazer rap quanto para a relação dos rappers com a audiência. Contudo, a tecnologia em si mesma não é determinante. Há outros fatores, sociais, políticos e econômicos que caminham em conjunto nesse processo de maior profissionalização do artista e também na mudança da sua ética de carreira. Não nos esqueçamos de que as possibilidades de mudança do status da música rap e de alguns rappers ocorreram na chamada Era Lula.
Como os rappers conciliam hoje o discurso contestatório das periferias e as estratégias de mercado?
Eu penso que as duas instâncias nunca estiveram separadas, mas hoje o mercado vem se alimentando bem desse discurso, e isso não apenas no mundo do rap. Basta saber como ficará na prática, ainda mais nesse contexto em que as desigualdades tendem a se acentuar. Você usou um verbo certeiro: há muita conciliação. Alguns rappers que estão no mercado hegemônico apresentam como estratégia a conciliação e, muitas vezes, até a forma do rap revela tal conciliação, como é o caso de algumas canções do Emicida que eu analisei em um artigo. Por outro lado, se os rappers não atingem o mercado, uma vez que são artistas, ganharão projeção de que maneira? Esse é um debate longo e não resolvido que sempre aparece em manifestações artísticas cujo veio político é forte. Porém, um ponto importante no caso do rap encontra-se na tensão de manter a autenticidade construída por meio de discurso periférico e antissistema do qual o mercado se alimenta e, ao mesmo tempo, redimensionar as novas possibilidades advindas do estrelato. Mas eu não sou muito otimista com a indústria cultural.
Qual o lugar do Emicida neste novo lugar social do rap?
Emicida é o farol para se compreender esse novo lugar social do rap. Ele apresenta uma carreira ascendente, dialoga com um público muito diversificado, ocupa lugares ímpares no rap nacional. Apostou na perspectiva de internacionalização da carreira – uma das características também do rap que se desenvolve a partir dos anos 2010. Criou a sua empresa, fez um desfile histórico no São Paulo Fashion Week, tocou no Teatro Municipal de São Paulo, investe em videoclipes cuja produção é visivelmente profissional. Em síntese, Emicida é o maior exemplo heurístico do que eu tenho denominado como a “nova condição do rap”.
Como rappers de outras gerações, como Mano Brown, se situam nesse cenário?
Apesar das suas especificidades, Brown e os Racionais têm apresentado uma ética de carreira muito parecida com os rappers que vieram depois no que se refere à profissionalização. É nesse sentido que eu falo de uma “nova condição do rap”, pois as mudanças nessa cena não se resumem à particularidade de uma geração. Mas são mudanças mais amplas que impactam o mundo do rap, e Brown e os Racionais não estão alheios a isso. Eles têm investido em outras sonoridades, há também as carreiras específicas dos membros. E, salvo engano, a Boggie Naipe, empresa dos Racionais dirigida pela Eliane Dias, inspirou-se no empreendimento da LAB Fantasma. Para finalizar, os Racionais também nos permitem observar o processo de “artificação” do rap – o modo como ele vem ganhando o estatuto de obra de arte. A incorporação do disco Sobrevivendo no Inferno (1997) como leitura obrigatória num dos vestibulares mais concorridos do Brasil, como o da Unicamp, é um caso exemplar dessa “nova condição do rap”.