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Roquette-Pinto buscou demonstrar que a miscigenação não era um problema

16 out/2013

Vanderlei de Souza
Vanderlei: “Antropologia de Roquette-Pinto ajudou a frear o entusiasmo
racista que grassava por setores da sociedade”. Fotos: Roberto Jesus

Como foi possível que um antropólogo físico, que fazia estudos de medidas de crânio e estava inserido no campo da eugenia tenha contribuído para rebater teorias que sustentavam que a população brasileira era “inferior” à de outros países, especialmente por seu caráter mestiço? O questionamento sobre Edgard Roquette-Pinto foi feito pelo historiador Vanderlei de Souza originalmente quando ele desenvolvia sua dissertação de mestrado sobre Renato Kehl, médico associado à chamada “eugenia negativa”, e que chegou a elogiar a política eugênica nazista de Adolf Hitler.

Essa questão, que levou Vanderlei de Souza a aprofundar estudos sobre a antropologia de Roquette-Pinto em sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, foi retomada por ele no Encontro às Quintas do dia 10 de outubro, ao afirmar que “Roquette-Pinto buscou demonstrar que, do ponto de vista da formação racial, a miscigenação não é um problema”. “Os nossos problemas [do Brasil] são outros”, declarou no evento.

Em entrevista ao portal COC, Souza falou sobre sua tese, vencedora do Terceiro Prêmio de Teses da Associação Nacional de História – Anpuh Brasil 2012, sobre o acesso às fontes e sobre a figura multifacetada de Roquette-Pinto. Confira os principais trechos.

Quais as principais contribuições dos estudos de Roquette-Pinto para a antropologia?

A principal contribuição da antropologia de Roquette-Pinto foi a formulação de uma forte crítica ao determinismo racial e biológico nas primeiras décadas do século 20. Nesse período, era comum atribuir os problemas sociais, econômicos e políticos do País à formação racial de sua população, devido à presença de um grande contingente de negros, indígenas e mestiços. A miscigenação com esses grupos étnicos era visto por muitos intelectuais como o principal empecilho para que o Brasil se transformasse numa nação civilizada e progressista. Para Roquette-Pinto, essas interpretações eram alimentadas por pressupostos arianistas de cunho racista. O grande objetivo de sua antropologia era demonstrar que, do ponto de vista biológico, a miscigenação racial não trazia prejuízos para a formação da população brasileira. Segundo ele, os chamados problemas nacionais nada tinham a ver com raça, mas sim com a falta de saneamento, saúde, educação e ao abandono em que vivia boa parte da população.

Em que contexto Roquette-Pinto produziu seus estudos e como o cenário da época influenciou seu trabalho?

No início do século 20, emergem os estudos eugênicos, baseados em teorias que reafirmavam a divisão da espécie humana entre “raças superiores” e “inferiores”. Para os eugenistas, era possível aplicar o conhecimento científico ao melhoramento racial. A eugenia construiu um discurso segregacionista violento, baseado na racionalidade científica, em argumentos civilizadores e no desejo moderno de controle e homogeneização da sociedade. A despeito desse cenário, Roquette-Pinto conviveu com uma geração de intelectuais que começavam a apontar os problemas sociais como os principais responsáveis pelo atraso do País. Euclides da Cunha, Manoel Bomfim, Capistrano de Abreu e Alberto Torres já vinham denunciando a herança colonial portuguesa e o abandono em que vivia a população do interior como problemas que impediam o desenvolvimento da nação. Nesse período, surge um grupo de médicos, sanitaristas e educadores que apontavam a falta de saúde e educação da população como questões a serem enfrentadas. As ideias difundidas pelo Movimento Sanitarista, representado por figuras como Belisário Penna, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Arthur Neiva, foram fundamentais para a antropologia de Roquette-Pinto, pois reafirmavam o que seus estudos apontavam: os dilemas nacionais eram de ordem política e social, e não racial.

Como a obra de Roquette-Pinto se inseriu no debate antropológico internacional sobre a questão da raça?

O trabalho de Roquette-Pinto se alimentou dos estudos antropológicos produzidos em países como Alemanha e Estados Unidos. A tradição alemã, sobretudo aquela formada no fim do século 20 a partir de um pensamento mais liberal e humanista, foi fundamental na construção das pesquisas dele, pois permitia pensar a humanidade como uma única espécie, cujas diferenças eram devidas mais a aspectos do meio do que a sua conformação anatômica e fisiológica. Roquette-Pinto estava conectado com as discussões internacionais envolvendo raça e miscigenação racial, os estudos sobre populações e o debate em torno da eugenia. Procurei demonstrar que a antropologia de Roquette-Pinto se torna mais inteligível quando analisado o debate internacional envolvendo os estudos antropológicos, as redes intelectuais e a circulação de ideias sobre raça, identidade nacional e população.

Qual a contribuição dos estudos de Roquette-Pinto no debate sobre raça na época?

Durante as três primeiras décadas do século 20, a antropologia de Roquette-Pinto teve um forte impacto no pensamento brasileiro, ajudando a frear o entusiasmo racista que grassava por setores da sociedade. Um aspecto que sintetiza a forma como a antropologia de Roquette-Pinto foi importante no início do século 20 é a referência que o sociólogo Gilberto Freyre faz a Roquette-Pinto no prefácio de “Casa-grande & Sanzala”, de 1933. Ele confessa que a antropologia de Roquette-Pinto foi fundamental para mudar sua percepção sobre o significado da miscigenação racial na formação do Brasil.

Vanderlei de Souza fala no Encontro às Quintas
“Roquette-Pinto buscou demonstrar que, do ponto de vista da formação racial, a miscigenação não
é um problema. Os nossos problemas [do Brasil] são outros”, disse Vanderlei.

Ele chegou a influenciar políticas públicas?

A contribuição dele deve ser vista num contexto do qual participaram outros intelectuais, desde a geração de Manoel Bomfim e Alberto Torres, passando pelos integrantes do Movimento Sanitarista, até Gilberto Freyre. No início dos anos 1930, um grupo liderado por Roquette-Pinto, Freyre e Arthur Ramos lançaria o “Manifesto dos intelectuais brasileiros contra o preconceito racial”, reafirmando que a antropologia não poderia permitir a disseminação de ideias racistas sustentadas por conhecimentos “pseudo-científicos”, como a eugenia. A positivação da identidade mestiça por esses intelectuais foi assumida durante o governo Vargas como ideologia oficial do Estado, com o intuito de produzir um discurso nacionalista, apesar das contradições no modo como seu governo lidou com a questão racial. Essa influência pode ser percebida nas discussões sobre controle imigratório na Constituinte de 1933-34, nas quais Roquette-Pinto e Freyre são acionados como autoridades científicas que condenavam a seleção de imigrantes por critério racial.

Qual foi seu principal objetivo ao produzir uma tese sobre Roquette-Pinto?

O objetivo foi analisar a trajetória e a obra de Roquette-Pinto enquanto antropólogo físico, procurando compreender como seus estudos sobre as características físicas e psicológicas da população foram articulados para pensar a construção de um “retrato antropológico” do Brasil. Esses estudos serviram como ferramenta política para intervir nos debates sobre a formulação de projetos de reforma da sociedade brasileira e de construção da própria nação, questões que estavam na ordem do dia. Meu intuito também foi compreender como se formou esse intelectual enquanto homem público que dedicou suas atividades ao estudo dos “problemas brasileiros” e foi figura importante também nos campos da educação, comunicação e letras. Minha tese analisou, ainda, a própria história da antropologia física no Brasil, inserindo-a no contexto internacional. Procurei compreender como ciência e política foram articulados nesse debate que envolvia as discussões sobre raça, populações e construção das identidades nacionais, temas que mobilizavam a vida intelectual da época.

Quais as principais contribuições de seu estudo para a compreensão do personagem Roquette-Pinto?

Uma das principais contribuições da minha tese diz respeito ao aprofundamento dos diálogos e das relações intelectuais e científicas estabelecidas por esse antropólogo nas primeiras décadas do século 20, tanto em relação aos intelectuais e autoridades brasileiras, quanto os antropólogos, eugenistas, médicos e historiadores estrangeiros. Analisar esse debate contribui para alargar não apenas a compreensão sobre esse personagem multifacetado que foi Roquette-Pinto, mas também para entender como se organizou a campo da antropologia no início do século 20.

Sua tese traz como contribuição importante a pesquisa de fontes inéditas ou pouco exploradas. Você poderia falar um pouco sobre esses arquivos?

O acesso ao Arquivo Pessoal de Roquette-Pinto, sob a guarda da Academia Brasileira de Letras (ABL), foi decisivo para o desenvolvimento da tese. Foi lá que realizei boa parte de minha pesquisa e onde encontrei as principais fontes para o desenvolvimento da tese. Outros acervos também foram importantes. Um deles é o Arquivo de Antropologia Física do Museu Nacional, localizado no Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), no Rio, onde encontra-se uma documentação fundamental para acompanhar como foram elaborados os estudos de Roquette-Pinto sobre os “tipos antropológicos” do Brasil. Outro arquivo é a Seção de Memória e Arquivo do Museu Nacional, sob a guarda do próprio museu, por meio do qual foi possível localizar um grande acervo retratando o cotidiano da instituição na qual Roquette-Pinto atuou por 30 anos, com destaque para a documentação referente às expedições científicas empreendidas por esta instituição, como a que Roquette-Pinto realizou ao interior do País em 1912.

Qual a importância dessa premiação?

É um prêmio muito importante, uma vez que a Anpuh é a principal entidade no campo da História. Além do reconhecimento e divulgação do meu trabalho, a premiação possibilitará que a tese seja publicada em livro pelas editoras da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. O prêmio também é um reconhecimento ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, instituição que vem tendo um papel fundamental na formação e consolidação dos estudos relacionados à história das ciências e da saúde.