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Uma obra em constante transformação

Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil acaba de incluir novos verbetes sobre a atuação de mulheres

Vivian Mannheimer

07 fev/2025

Marie Josephine Mathilde Durocher, conhecida como Madame Durocher, nasceu na França em 1809, emigrou para o Brasil, tendo ingressado em 1833 no curso de partos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Maria Augusta Generoso Estrella nasceu em 1860 no Brasil e em 1881 concluiu o doutorado em medicina pela New York Medical College and Hospital for Women. Ainda na década de 1880, Rita Lobato Velho veio do Rio grande do Sul e doutorou-se em medicina com uma tese sobre operação cesariana. Outras duas, Ermelinda Lopes de Vasconcellos e Antonieta Cesar Dias se formaram médicas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e dedicaram-se ao tratamento de doenças de mulheres e crianças.

Os nomes dessas mulheres foram os últimos verbetes incluídos no projeto Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1970), da pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz Maria Rachel Fróes da Fonseca. Essas histórias mostram a luta de mulheres por um espaço na medicina e na sociedade. Nessa entrevista, a pesquisadora falou, entre outros temas, sobre os principais achados nas pesquisas para a definição dos verbetes.

A senhora poderia explicar o que é esse projeto do Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências e da Saúde no Brasil (1832-1970)? 

Esse projeto começou em 2000 e em 2023 mudamos para outra plataforma, com mais recursos. Também ampliamos um pouco o escopo que abrange. É um dicionário que busca reconstituir a história das ciências e da saúde pública no Brasil por meio de verbetes que refletem a trajetória biográfica de determinados personagens nesse campo: médicos, cientistas, gestores do campo da saúde. Também abrange os espaços de formação: instituições de ensino, de pesquisa, além das instituições hospitalares, que são os espaços onde esses personagens atuaram. Inclui ainda as associações e sociedades médicas que estavam sendo criadas e que eram espaços importantes de socialização dos conhecimentos, de troca entre esses personagens. Começamos a pesquisar e organizar verbetes sobre personagens e instituições atuantes desde o início do século 19, mais especificamente em 1832, e no formato atual avançamos até 1970.

Qual a importância desse dicionário como fonte?

O projeto foi criado para ser utilizado por um público amplo. Além das informações existentes em cada verbete, as referências e as bibliografias utilizadas, indicamos onde se podem ser encontrados os livros ou documentos consultados. E a ideia é continuarmos incluindo verbetes, pois a perspectiva do projeto é que esse é um trabalho sempre em construção, uma obra em constante transformação. 

Como o conteúdo está online, acessível a todos, essa plataforma é fonte para pesquisas sobre os mais variados temas. Uma preocupação foi colocar nos verbetes todos os nomes pelos quais esses personagens foram conhecidos e, também todas as denominações que as instituições tiveram ao longo dos anos. Um exemplo é a Faculdade de Medicina da UFRJ. Sua origem é a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro, que começou em 1808. Em meados do século 20, essa escola virou um instituto, incorporou-se a outros institutos e formou o que se tornou a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas ao colocarmos o nome antigo da instituição também é possível chegar ao verbete. O mesmo ocorre com a própria Fiocruz, que começa em 1900 com o nome de Instituto Soroterápico Federal. A partir de todos os nomes que a instituição já teve, é possível acessar ao verbete. 

Quanto aos resultados alcançados pelo dicionário, ficamos muito satisfeitos que vários alunos que apresentam seus pré-projetos para os programas de pós-graduação da COC, indicando terem consultado o site do dicionário. Esse é um sinal de que o dicionário está alcançando o público e o usuário que buscamos com a criação do Dicionário.

Como vocês definem os verbetes? Quais os critérios?

Olhando a trajetória específica de um médico na metade do século 19, percebe-se que ele se formou em determinada escola médica, trabalhou em determinada casa de saúde, e participou de determinada sociedade médica. Então à medida que íamos pesquisando e elaborando os verbetes, outras instituições e personagens foram surgindo. E sempre tivemos a preocupação de colocar também aquels personagens menos conhecidos. Sabemos que a história das ciências, a história de todos os campos de conhecimento, é constituída pela atuação de um grupo bastante amplo e diverso de pessoas, e de instituições, que não necessariamente estão no foco, são as mais conhecidas, mas que também ajudaram na construção daquele conhecimento em um determinado contexto. 

Um aspecto importante foi olharmos também aquelas instituições, que embora em um primeiro momento não pensaríamos que estariam voltadas para o campo das ciências ou da saúde. Por exemplo, temos verbetes sobre jardins botânicos. Lá trás os campos do conhecimento não eram assim tão separados, definidos e especializados, e os jardins botânicos eram igualmente espaços importantíssimos para a pesquisa científica, a formação e atuação dessas pessoas.

Durante esse processo de confecção do dicionário, alguns verbetes específicos chamaram a atenção? Quais as descobertas que mais surpreenderam?

Fomos surpreendidos por trajetórias que não eram muito conhecidas ou pela criação de determinadas instituições. Algo que nos chamou muito a atenção, foram as instituições voltadas para a medicina veterinária e a agricultura, áreas que caminharam juntas com o campo da medicina. Ao olharmos a segunda metade do século 19, percebemos a criação de várias escolas em diversos estados do Brasil, como escolas técnicas no campo da agricultura e outras já se propondo como instituições de ensino superior nesse campo. Essas instituições e áreas não eram normalmente tratadas nos livros nem nas pesquisas feitas até então.

Um outro caso interessante da pesquisa para o dicionário foi o do Lazareto da Jurujuba, fundado na metade do século 19. Mas não era para leprosos, funcionava como um hospital para recolher pessoas que chegavam em embarcações, com suspeita de doenças contagiosas. E o local foi mudando. Primeiro vira um hospital, depois um educandário e hoje é uma escola de ensino médio. Encontramos nos jornais, em sessões tipo “Cartas do Leitor”, a discussão sobre sua construção. Pelos verbetes dá para perceber a transformação do lazareto ao longo do tempo e muita gente desconhece que uma parte ainda da edificação ainda existe até hoje.

Mas o que mais nos chamou a atenção foi a presença de mulheres. Durante muito tempo, as mulheres não tinham acesso à educação superior e quando alcançavam o nível médio, viravam professoras. Ao longo das pesquisas, especialmente a partir de meados do século 19, começamos a perceber um grande movimento de transformação, quando começaram a serem ampliados os espaços de educação para essas mulheres. E elas mesmas começaram a se manifestar, reivindicando o direito a uma educação mais ampla. 

A senhora poderia dar exemplos de mulheres que entraram nesse dicionário e falar um pouco mais sobre a atuação dessas delas na medicina na época?

Na metade do século 19, quando as mulheres não podiam entrar em curso superior, dentro das faculdades de medicina foram criados os cursos de partos. Elas podiam fazer esse curso e atuar como parteiras, mas não podiam fazer o curso inteiro da faculdade para se tornarem médicas. Uma figura que nos chamou a atenção foi a Madame Durocher (1809-1873) que é a mais conhecida e foi muito atuante. Ela fez esse curso de partos na década de 1830, foi a primeira mulher a entrar na então Academia Imperial de Medicina, e durante décadas continuou sendo a única mulher presente lá. Ela trabalhava na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, fazia atendimentos particulares para mulheres e crianças e, também escreveu um livro discutindo a questão da emancipação dos escravos. Por conta dela, fomos buscar outras mulheres que vinham se destacando. Esses foram alguns dos últimos verbetes que colocamos.

Tem uma outra jovem com uma história bastante interessante, sobre a qual não é tão falada, a Maria Augusta Generosa Estrella (1860-1946). No final da década de 1870 ela queria fazer medicina, mas como não tinha aqui, ela consegue ir para os Estados Unidos, com 15, 16 anos e se forma em uma escola de medicina só para mulheres. Durante o curso, ela criou um periódico intitulado A Mulher. Periodico Illustrado de Litteratura e Bellas Artes, consagrado aos interesses e direitos da mulher brazileira que tratava de assuntos relacionados às mulheres, reivindicando o espaço delas na sociedade.

E, também outras mulheres se destacaram. Todas elas se formaram médicas e atuaram no atendimento de mulheres e crianças.  A Rita Lobato (1866-1954) do Rio Grande do Sul, foi uma delas. A Ermelinda Lopes de Vasconcellos (1866-1952) era gaúcha e veio para o Rio de Janeiro estudar, e acabou atuando aqui, tendo participado da fundação de uma sucursal da Federação das Ligas para o Progresso Feminino em Niterói. Outra foi Antonieta Cesar Dias (1869-1919), que trabalhou no serviço de ginecologia do Dispensário do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, fundado por Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo Filho, que era um médico que atuava nesta área do atendimento das mulheres e crianças. 

Eram pessoas que estavam procurando ampliar seus espaços dentro da sociedade. A Durocher acaba atuando mais como parteira do que como médica. Mas as outras três formaram-se médicas e atuaram no atendimento de mulheres e de crianças.